Estima-se que em Moçambique 2,300 mulheres e meninas contraem fístula anualmente, contudo projecções mais recentes indicam que os números reais podem rondar os 4,000 por ano. A fístula obstétrica ocorre quando as mulheres não têm acesso a cuidados de saúde oportunos e de qualidade, sendo a discriminação de género e a marginalização social, riscos adicionais que elevam a ocorrência da doença entre mulheres e meninas pobres, carentes e marginalizadas.
A fístula obstétrica é formada por um buraco entre o canal de parto e a bexiga e ainda podendo alcançar o reto. A mulher com este tipo de ocorrência passa a sofrer de incontinência urinária e fecal, sendo que os fluidos normalmente causam um forte odor causando também ulcerações ou queimaduras. Esta situação que leva à exclusão social de milhares de mulheres tem como principais causas partos prolongados e obstruídos, especialmente onde o acesso a cuidados obstétricos é restrito.
Entretanto, o director Geral da Focus Fístula Moçambique, o cirurgião Igor Vaz, afirmou ontem em Nampula, norte de Moçambique que o país ainda enfrenta vários desafios para a prevenção e tratamento da fístula obstétrica.
Igor Vaz fez estas declarações por ocasião do Dia Internacional para Acabar com a Fístula Obstétrica” assinalado a 23 de Maio, com o lema “Quebrando o Ciclo: prevenindo a Fístula em todo o mundo”,
Segundo o especialista, o mundo está a registar progressos significativos no tratamento da doença, mas em Moçambique ainda continua a haver muitos novos casos da doença.
“É possível prevenir a fístula. Nos países desenvolvidos, por exemplo, já não há fístulas obstétricas. Porque todas as mulheres que ficam grávidas vão a consulta pré-natal onde a enfermeira de Saúde Materno Infantil (SMI) faz o diagnóstico para ver se há ou não risco obstétrico”, disse.
Segundo Igor Vaz, as mulheres grávidas e com alto risco obstétrico devem dar entrada nas unidades sanitárias quando começam a sentir dores, não quando já passaram 24, 48 ou 72 horas depois de iniciar o trabalho de parto.
Para Igor Vaz a existência de muitos casos de fístula em Moçambique deve-se a uma combinação de factores ligados ao acesso do serviço de saúde. “A falta de acesso à unidade sanitária pode ser vista em diferentes perspectivas. Podemos falar de falta de acesso quando uma sogra não deixa a sua nora ir à unidade sanitária para dar parto. Quando uma mulher grávida tem de pedir autorização à família para ir ao hospital, este é outro problema. Quando as pessoas vivem a mais de 100 km de uma unidade sanitária. Quando na aldeia ou comunidade não tem transporte. Tudo isso não tem a ver com o Ministério da Saúde, tem a ver com estradas, transporte, educação”, aponta o médico, acrescentado que “o Ministério da Educação tem de ter escolas e ensinar as mulheres como prevenir a gravidez”.
Mais adiante, o médico aponta para a necessidade de se abrir mais unidades sanitárias para fazer face ao crescimento populacional que desde a independência nacional passou de cerca de 10 milhões para mais de 30 milhões de habitantes.
“Mas depois temos a parte da saúde, que é responsabilidade do Ministério da Saúde. Aí podemos ver a questão da abertura de mais centros de saúde. A população de Moçambique está a crescer de uma forma exponencial. Nós na independência tínhamos 10 milhões de habitantes, mas hoje temos 32 milhões. Mas o número de médicos e o número de enfermeiros de saúde materna não aumentou consideravelmente. Nós ainda não temos capacidade de ter médicos especialistas em todas as províncias. Portanto, isto também é falta de acesso às unidades sanitárias, e as que existem ainda não têm qualidade desejável”.
O médico cirurgião do Hospital Central de Nampula, Bernardo Leite apontou para a mesma direcção, tendo lamentado a falta de médicos especialistas na maior unidade sanitária da zona norte do País.
“Houve um estudo independente em 2013 que fez avaliação de quantos médicos especialistas são necessários para o Hospital Central de Nampula. Em cirurgia geral, por exemplo, o estudo indicou que eram necessários 14 especialistas. Mas neste momento somos apenas 6 cirurgiões. Este estudo independente deixou connosco esta informação e talvez daqui a 20 anos podemos chegar a este número de 14”, disse.
O médico explicou ainda que no geral, a província de Nampula está aquém da capacidade para responder à demanda em termos de cirurgias. “Em Nampula temos 23 distritos e destes apenas 7 têm capacidade cirúrgica. Como vê estamos muito longe do desejável”.
“Nós temos mulheres de todo o tipo de idade, desde meninas de 14 ou 15 anos que ficam grávidas e tem partos complicados e até mulheres de 60 ou 70 anos. Estas mulheres de 60 a 70 anos são aquelas que têm mais de 20 ou 30 anos que nunca vieram para uma unidade sanitária”.
No Hospital Central de Nampula estão a ser tratadas doentes de fístula provenientes de diferentes distritos da província.
Uma das pacientes que aguarda o tratamento é Juliana J., 24 anos. Contraiu a fístula porque o bebé nasceu acima do peso, mas a enfermeira que fez o parto não sabia suturar o que complicou a vida da Juliana.
“Eu estava grávida e fui a todas as consultas pré-natal. Chegado o dia do parto verificou-se que o bebé era grande e tiveram de me cortar para o bebe sair. Depois de me cortar, a enfermeira teve de me suturar. Mas quando suturava dizia que ’não sei fazer isso, mas vou fazer assim mesmo”.
Passados duas semanas a paciente não estava a melhorar. “Voltei para o hospital e o médico me observou e viu que de facto não estava bem. Em Agosto ou Setembro de 2022 fui submetida a segunda cirurgia, mas não deu certo. Em novembro do mesmo ano fiz a terceira cirurgia, mas de novo não deu certo. Por isso estou aqui para receber novo tratamento”.
Por conta da doença, Juliana diz que vive um drama. “Perco fezes pela vagina. Não consigo controlar. Principalmente quando é diarreia ou quando as fezes são leves. Os meus dias são difíceis. É desconfortável viver com esta situação. Sempre que vou para casa de banho tenho de introduzir os dedos na vagina e tentar limpar. Por vezes não como para evitar gases”.
O dia para acabar com a fístula foi proposto pela União Africana e aprovado pela Organização das Nações Unidas (ONU), como forma de promover o compromisso dos Estados com a eliminação da condição, destacar as principais causas da doença e refletir sobre os progressos visando a sua eliminação.