Professor José Castiano, vice-reitor da UP-Maputo, em entrevista á Revista ÁGORA. Castiano defende ainda que a história serve-se fria (citando o Professor Jorge Ferrão), e por isso, a nossa ainda está muito quente “para procurarmos saber quem matou e quem não matou”.
HÁ necessidade de se desarmar as mentes, num processo que deve estar associado à busca de um futuro comum e não da verdade. Significa que há, em primeiro lugar, necessidade de integração efectiva dos ex-guerrilheiros e outros membros da Renamo na sociedade. Esta é a posição de José Castiano, assumida numa entrevista que concedeu a ÀGORA. De acordo com o filósofo moçambicano e vice-reitor da Universidade Pedagógica de Maputo, isso pede, antes de mais, a separação nítida entre os assuntos do Estado, do Governo e do partido no poder. Castiano refere-se, por outro lado, a uma dimensão espiritual da reconciliação.
Para José Castiano, a conclusão do DDR, com a entrega da última arma em Junho de 2023, simboliza o fim das mãos armadas. Porém, a reconciliação, em si, comporta três fases: o desarmamento militar, que teve o seu término simbólico em Gorongosa, província de Sofala, no dia 15 de Junho de 2023; o desarmar das mentes, ora em curso, um desafio mais profundo de todos.
Segundo o Professor, o desarmar das mentes significa que o aperto de mão e o abraço simbólico entre o Presidente da República, Filipe Nyusi, e o Presidente da Renamo, Ossufo Momade, deve estender-se à toda a sociedade, em termos de valores e em termos institucionais.
A terceira e última fase, que é o objectivo final da reconciliação, é o triunfo da justiça, do direito, mas ligado também à paz efectiva. “Significa que temos que trabalhar para a paz efectiva, trabalharmos para a justiça social e trabalharmos com a nossa própria história”, disse.
O filósofo, fala da necessidade de desarmar as mentes como forma de evitar a repetição de falhas registadas na implementação do Acordo Geral de Paz. Explica que a terceira fase muito importante da reconciliação, é a busca de um futuro comum, o que vai implicar, primeiro, a integração efectiva dos soldados e outros membros da Renamo na sociedade e no Estado, o que exige a separação institucional, bem nítida, entre assuntos do Estado, do Governo e do partido no poder.
“Em relação ao AGP, deixe-me dizer que em Roma não fizemos um acordo de paz, mas um compromisso para o calar das armas. Para a paz efectiva, deveria ter-se trabalhado muito mais. Tivemos algumas dificuldades nas nossas mentes e como consequência voltamos a armar as mentes”.
O Professor explicou que havia, no preâmbulo do AGP, início de uma ética reconciliatória no qual chamava-se atenção para se evitar que as partes continuassem a chamar de bandidos armados os homens da Renamo e comunistas os membros da Frelimo. Tratava-se de um preâmbulo ético-valoroso que não conseguimos dar continuidade. Formamos um Parlamento multipartidário, mas que continua um pouco com a caça às bruxas.
“A história serve-se fria”
Infelizmente “a história serve-se fria”, como dizia o Professor Jorge Ferrão, Reitor da UP- Maputo há dias, e a nossa ainda está muito quente para procurarmos saber quem matou e quem não matou.
De acordo com o Professor Castiano, vasculhar a história com pressa pode levar o país de novo à guerra, se não forem criadas condições institucionais de diálogo permanente, baseado numa perspectiva de Moçambique que todos almejam a partir de hoje.
Lembrou que os países que tentaram fazer isso, a África do Sul, por exemplo, com a Comissão de Reconciliação e Verdade, caíram num debate de culpabilização, já que a história ainda estava muito quente. Talvez para a África do Sul esse modelo fosse muito bom, porque as atrocidades do “Apartheid” ainda estavam presentes. “Para o nosso caso, sou da opinião que se deve deixar o tempo passar e um dia podemos procurar organizar a história para a nossa consciência e a verdade. Lancei uma proposta no livro, na qual defendo que temos que ter uma comissão parlamentar que chamei de “Reconciliação e Futuro” e não “Reconciliação e Verdade”, disse.
Defendeu que chamou de “Reconciliação e Futuro” porque o que falta como sociedade é um projecto comum, um projecto moçambicano, “não me refiro ao dos anos fervorosos da Revolução”.
Segundo José Castiano, a missão dessa comissão seria uma instância ética para que o Parlamento, como espelho de debates, não permitisse insultos entre os seus membros, mas que discutissem em função de um futuro comum. Tivemos aqui tentativas de criar nossos modelos de reconciliação. O primeiro foi com Samora Machel, o primeiro Presidente de Moçambique independente, quando foram perdoados os “comprometidos”, indivíduos que de um modo ou de outro pertenceram ao sistema repressivo colonial. No final de uma série de sessões realizadas na Escola Secundária Josina Machel, na cidade de Maputo, Samora afirmou que “agora já não há PIDE, já não há ‘comprometidos’, somos todos moçambicanos”.
Disse que o segundo modelo de reconciliação foi do Presidente Joaquim Chissano, quando convocou religiosos, intelectuais, representantes de partidos políticos, incluindo a Renamo, académicos e a sociedade civil sobre a Agenda 2025, uma ideia de que, no lugar de estarmos a discutir o passado, vamos debater os aspectos de interesse comum dos moçambicanos. A discussão foi a todas as províncias e nasceu um documento de amplo consenso nacional, com linhas fundamentais para o que deveria guiar o país, independentemente dos governos do dia. Mas porque não foi obrigação dos executivos que se seguiram, assumir esta agenda como guia-mestre da sua acção governativa. Porque, apesar de ter sido carimbado no Parlamento, não houve uma força na própria Assembleia que pudesse ter a missão, a que chamo de ‘missão de futuro’, de recordar sempre os membros do governo da existência de uma agenda comum, uma plataforma de consenso nacional. Eu considero que isto está entre as várias causas que levaram ao retorno de conflitos armados em Moçambique.