No período entre 2015 e 2019, mais de 50 mil queixas de violência doméstica nos gabinetes da polícia que tratam dessa matéria foram apresentadas por mulheres e apenas 12.004 por homens.
A psicóloga clínica e adjunta de comissária da Polícia da República de Moçambique, Lurdes Mabunda considera que a violência doméstica no país não discrimina classes sociais nem estatuto académico, porque resulta de algumas “práticas culturais tóxicas”
“Todos somos potenciais vítimas de violência doméstica, porque é uma prática com uma força indiscriminada, não escolhe classe social nem estatuto académico”, declarou Mabunda à Lusa a propósito da sua nova obra “Radiografia da Violência Doméstica em Moçambique: O Relato de Quem Está Por Dentro”.
São 237 páginas e sete capítulos em que se coloca a mulher como a principal vítima de violência doméstica e em que se apontam alguns princípios defendidos pelo sistema patrilinear vigente nas comunidades moçambicanas como a principal causa do sofrimento infligido às mulheres.
“No período entre 2015 e 2019, mais de 50 mil queixas de violência doméstica nos gabinetes da polícia que tratam dessa matéria foram apresentadas por mulheres e apenas 12.004 por homens. Essas cifras mostram a feminização da violência doméstica”, enfatizou.
Lurdes Mabunda alertou que prevalece a perceção de que os “números institucionalizados” estão muito aquém da realidade, porque ficam de fora “muitas cifras negras” — o conceito usado para casos não relatados às autoridades.
“Desde a nascença, os homens são ensinados a ter uma relação de posse sobre a mulher e a assumir a sua supremacia física como uma vantagem para imporem relações de domínio”, explicou.
Por outro lado, prosseguiu, as mulheres são formadas para a submissão e subserviência em relação ao homem, condições que perpetuam a violência doméstica nos lares moçambicanos.
“Há inúmeros casos em que são as famílias a pressionar as vítimas a retirar queixas de violência doméstica, porque está normalizada, mesmo sendo um crime de natureza pública”, revelou a adjunta de comissária da Polícia da República de Moçambique.
A psicóloga observou que a violência doméstica também é potenciada pela submissão económica da mulher, porque há vítimas que preferem viver com o agressor, devido à segurança económica e financeira que lhe dão, apesar das agressões.
Mabunda defendeu uma mobilização geral contra a violência doméstica, envolvendo a educação, igrejas, líderes comunitários e instituições públicas e estatais.
“A criança de hoje será um adulto potencialmente violento, se não for educada para a paz conjugal e a harmonia familiar”, enfatizou.
Na dimensão legal, continuou, Moçambique deu passos importantes, mas há imperfeições que devem ser corrigidas.
“A lei contra a violência doméstica trata a mulher e o homem da mesma forma, quando o principal rosto deste drama é feminino”, referiu.
Por outro lado, o processo de responsabilização criminal da violência doméstica devia ter uma forma própria, dada a celeridade para este tipo de delitos, acrescentou.
A dirigente policial também alertou para o erro de a lei de combate à violência doméstica não incluir a criança e o idoso, num contexto em que também são vítimas de abusos nas relações com familiares.
Mabunda defendeu igualmente maiores investimentos na criação de mecanismos de proteção das vítimas, assinalando que o país dispunha de apenas 323 gabinetes de atendimento em 2019.
Essas estruturas não estão dotadas de condições para o acolhimento das vítimas, que, muitas vezes, são obrigadas a voltar a conviver com o agressor, após apresentarem queixa na polícia.
Formada em Psicologia Clínica e licencianda em Direito, Lurdes Mabunda foi chefe do Gabinete de Atendimento à Família e Vítimas de Violência Doméstica em Maputo.