União forçada e prematura: Raparigas relatam dor e mágoa

DOR e mágoa é o sentimento de quem viveu experiências de uniões forçadas e prematuras. Ana João (nome fictício), é uma jovem de 18 anos de idade que, a partir dos 14 anos, foi forçada pelos próprios familiares a viver em união forçada e prematura, com um homem cuja idade se equipara à do seu avô.

Natural do distrito de Majune, no Niassa, a rapariga partilhou a triste história numa conferência nacional virtual organizada recentemente em Maputo, pela Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC), sob o tema “Lei de Prevenção e Combate às Uniões Prematuras”.

Numa intervenção virtual, a partir de Majune, Ana João, entre lágrimas e soluços,  contou ter sido arrastada para a união prematura quando tinha apenas 14 anos, por razões que até hoje desconhece e que ninguém da família ousa revelar. “Nessa união havia muita coisa oculta”, conta.

Durante a narração, a jovem pediu desculpas ao painel e a todos os que acompanhavam a conferência por não conseguir conter a tristeza que sentia ao revelar a sua triste e penosa história.

“Partilhar a minha experiência é humilhante mas, ao mesmo tempo, é uma vantagem porque aproveito desabafar os momentos de dor e mágoa por que passei durante os dois anos em que vive maritalmente”, conta Ana, aproveitando a ocasião para agradecer aos activistas sociais que trabalharam para o seu resgate da união prematura e forçada.

Revelou que não foi ao lar por vontade própria, não tendo sido consultada se queria ou não o tal homem e não foi se quer avisada sobre o dia em que a levariam para o lar.

“Durante o período em que estiva no lar estudava às escondidas porque o meu ex-marido me proibia. Tinha muitas faltas por causa disso e quando conseguisse sair de casa não assistia todas as aulas, pois, temia que ele descobrisse e me espancasse”, disse.

A jovem, explica que só se apercebeu que estava em união forçada, prematura e perante uma violação dos seus direitos, depois de participar de uma palestra na escola sobre a sexualidade e uniões forçadas, convidada pelas colegas.

“Nesse encontro, as activistas falaram coisas que me levaram a perceber que a vida que eu levava não era boa, embora eu mesma percebesse que não era aquilo que queria”, explica.

Esta é a história de milhares de adolescentes moçambicanas que vivem episódios semelhantes, situação que contraria os esforços para a erradicar deste mal, empreendidos pelo governo, organizações da sociedade civil e parceiros de cooperação.

São histórias arrepiantes que denunciam a necessidade de uma intervenção urgente junto às comunidades, passando pela sensibilização e aplicação da lei aos violadores.

A pobreza e o desconhecimento das leis são apontados como principais factores que continuam a levar famílias a empurrar suas filhas para uniões prematuras.

Avô faz da neta sua esposa

ESTA triste e arrepiante história foi denunciada há dias às autoridades policiais, no distrito de Dondo em Sofala. Trata-se de um casal, o homem de 65 anos e a mulher de 55 que obrigou a própria neta de 14 anos, filha da filha de ambos a se envolver sexualmente com o avô, uma vez que a avó já não correspondia aos desejos carnais do marido.

O episódio iniciou nos finais do ano passado, quando a segunda esposa do idoso perdeu a vida. O homem, inconsolado, solicitou a outra mulher que o ajudasse a encontrar uma companheira. A mulher resistiu ao pedido do marido até que a relação entre ambos começou a azedar.

Em Janeiro deste ano, a adolescente, órfã de pai, passou a viver com o casal, fugindo dos maus tratos da mãe. Foi quando a mulher sugeriu ao marido que tomasse a neta em esposa.

“Eu falei para ele que como já não precisava mais de mim, que levasse a nossa neta em minha substituição”, revelou a mulher, salientando que a sua proposta foi aceite de imediato pelo marido, entretanto, recusada pela adolescente.

“A minha avó disse-me que se eu não dormisse com o meu avô ele corria o risco de perder a vida e temendo isso, aceitei e de lá até hoje passei a dormir com o vovô, mesmo sem querer”, desabafa a adolescente.

O crime sexual iniciou em Fevereiro deste ano, e o ancião, gradualmente deixou de se envolver sexualmente com a sua esposa, preferindo a mocidade da neta. Revoltada com a rejeição, a avó desabafou a um familiar, este que imediatamente, tratou de denunciar o crime às autoridades competentes.

Em contacto a imprensa, já na Esquadra da Polícia, o idoso reconheceu o acto e pediu desculpas pelo crime.

“O satanás tomou conta de mim, não esperava estar aqui hoje, estraguei a minha vida, peço desculpas”, disse o idoso que vai responder em prisão, juntamente com a sua esposa.

Ele proibia-me de ir à escola

DO POSTO administrativo de Chilembene, distrito de Chokwé, em Gaza, interveio a jovem Marlene Ubisse, de 17 anos de idade, também resgatada de união prematura em 2019, quando frequentava a 9ª classe.

Hoje, estudante da 12ª classe, Marlene conta que em 2018, com 14 anos de idade,  conheceu um jovem de 30 anos e pouco tempo depois abandonou os estudos e juntou-se ao namorado.

“Quando isso aconteceu, a minha a mãe que me chamava sempre atenção ficou muito preocupada e procurou a direcção da escola para apresentar a situação”, disse para quem o esforço de mãe, da escola e dos conselheiros do projecto da FDC contribuiu para o seu resgate daquela união.

Segundo Marlene, a parte mais triste da história foi o facto de o seu “ex-companheiro”, não a ter deixado frequentar a escola.

“Ele não queria que eu fosse à escola e sempre que a discussão fosse essa, mandava-me escolher entre ele e a escola”, explica, acrescentando que uma vez que tinha conhecimento dos seus direitos optou pela escola tendo, consequentemente, regressado à casa da sua mãe, mas em estado de gravidez. Porém, a criança não resistiu, tendo encontrado a morte.

Os seus autores, alegam para a contínua prática destes crimes, os hábitos e costumes locais.

Não quero mais saber de relacionamento

MARÍLIA Atália, 19 anos de idade, do distrito da Macia, experimentou o lar aos 15 anos, após a morte dos pais que deixaram sob sua responsabilidade cinco irmãos, sendo ela a mais velha.

“Fiquei apenas dois anos no lar e voltei para casa com o meu filho, porque ele (o marido) não queria que eu recebesse visita dos meus irmãos, ao mesmo tempo que não me deixava ir vê-los. Eu não podia aceitar isso porque eles não têm mais ninguém na família”, sublinhou.

Com um bebé de quatro anos, Marília Atália está em casa sem esperança de voltar à escola.

“Não tenho como estudar. Tenho os meus irmãos por cuidar, o mais novo com cinco anos e o próprio meu filho que tem apenas quatro. Sou responsável pela alimentação da família e pela educação de todos, pois os nossos tios, irmãos da mamã e do papá, não se aproximam de nós”, desabafa a rapariga, que recorre a trabalhos domésticos para garantir o sustento da família.

A jovem garante que não quer ter mais filhos e muito menos casar-se. Para não engravidar, fez um tratamento tradicional, que acredita ser seguro.

“Quando a minha mãe perdeu a vida, fiquei a cuidar de um irmãozinho de seis meses e um outro de dois anos e na altura eu tinha 15 anos. Os outros três já eram crescidinhos”, referiu a nossa fonte.

A jovem garante que não foi forçada por ninguém a viver com um homem. Fê-lo na tentativa de oferecer uma vida melhor aos irmãos.

“O pai do meu filho, que já tinha uma mulher, com quem continua até hoje, disse que se eu casasse com ele haveria de me ajudar a cuidar dos meus irmãos”, lembra-se a rapariga que durante o namoro, o homem, então com 35 anos, levava para casa dos órfãos arroz, pão e, certas vezes, dinheiro.

Desde que a Marilia Atália decidiu voltar para casa, o homem nunca mais a procurou, nem se quer ajudou a alimentar o filho.

Entretanto, normas sociais, culturais e desigualdades sócio-económicas impulsionam a ocorrência de casamentos prematuros em Moçambique e no mundo. Segundo o censo de 2017 no país, a prevalência de casamentos prematuros é mais que o dobro nas áreas rurais, (35 porcento das raparigas casadas entre os 15 e 17 anos) do que nas áreas urbanas (15 porcento).

 Banir práticas sociais prejudiciais

A presidente da Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC), Graça Machel, defendeu no mesmo encontro o banimento de todas as práticas sociais que prejudicam o desenvolvimento da rapariga, dentre elas as uniões forçadas e prematuras.

Para esta activista social, mesmo as ditas práticas consagradas e seculares, quando forem prejudiciais à criança, mulher, rapariga e à sociedade no geral, devem ser questionadas. No seu entender, Moçambique não deve continuar entre os dez países do mundo com os índices mais altos de uniões forçadas e prematuras.

“Creio que devíamos fazer um grande compromisso de que vamos retirar o nosso país desta inglória lista”, salientou Graça Machel, reconhecendo que esta não é tarefa fácil.

Mesmo assim, Graça Machel exorta os intervenientes nesta matéria a assumirem um compromisso consciente, o que passa por ter clareza do universo de raparigas que se pretende resgatar das uniões prematuras, integrá-las nas suas famílias e empoderá-las.

Dirigindo-se aos representantes do Governo, parlamentares, parceiros de cooperação e de organizações da sociedade civil que participavam no encontro, disse que, ainda que o país tenha registado alguns avanços, cada um deve ter consciência de tirar pelo menos metade dos seis milhões de adolescentes das uniões forçadas e prematuras.

Graça Machel chamou atenção às organizações e todas as pessoas envolvidas na luta contra uniões forçadas e prematuras para que tenham em mente que o sucesso deste trabalho passa pela mudança de consciência da sociedade sobre o papel da mulher.

A activista social indicou, como primeiro passo para o alcance de resultados concretos, o conhecimento do universo de raparigas em situação de uniões forçadas e prematuras, assim como a organização das instituições que actuam nesta área.

“Aqui temos de falar em números porque dizer que resgatamos muitas ou poucas raparigas não vai funcionar”, salientou.

Também sugeriu a tradução da lei em pelo menos cinco línguas nacionais, nomeadamente emakhuwa, echuwabu, cindau, cisena e xichangana, as mais faladas do país.

A identificação e harmonização das mensagens-chave é outro elemento importante avançado por Graça Machel, acreditando que isso vai garantir que não haja deturpação na comunicação.

Dados do UNFPA em Moçambique indicam que 12 milhões de raparigas entram na lista de uniões forçadas e prematuras anualmente em todo o mundo. Pesquisas domiciliares (DHS 2011, IMASIDA 2015) descobriram que Moçambique tem uma das maiores taxas de prevalência de casamento prematuro na África e no mundo, com 1 em cada 2 raparigas sendo forçada a casar antes dos 18 anos.

Um comunicado da Procuradoria Provincial de Nampula, mais concretamente do grupo de referência para a protecção e combate ao tráfico humano e uniões prematuras, reportou semana passada a entrada, naquele órgão, de 150 processos concernentes a abuso sexual de menores nos primeiros seis meses do presente ano.

Por mais severa que seja, punição em si não basta

Para o jurista Manuel Didier Malunga, não está em causa o quadro normativo que o país apresenta, mas a sua efectividade dentro do ambiente das relações sociais. “A punição, em si, pelo crime, por mais severa que seja não pode ser o privativo meio de erradicar um mal social. Urge entrar na essência do tecido social e encontrar os pontos que permitem que o comportamento indesejável se manifeste”.

Segundo o jurista, nesta medida, a consciência individual e colectiva sobre o estrondoso prejuízo de alguém se sentir dono de sentimentos ou afectos alheios deve estar na primeira linha da balança.

Explica que as crianças estão, por lei e por natureza, numa situação de liberdade limitada quanto ao querer e entender as suas escolhas. Os adultos (pais, em primazia) actuam, assim, como seus representantes legais, mas este poder não pode se substituir ao núcleo essencial da integridade pessoal: afectos, sentimentos e emoções.

Acrescenta que os pais, a sociedade e as instituições devem convergir neste entendimento de que às crianças se deve olhar como ser igual, mas em crescimento. “Nenhum costume ou rito deve se sobrepor a esta integridade da criança não só porque a lei proíbe, mas sobretudo por ser um direito natural do ser humano”.

Para Didier Malunga, o ambiente legal favorece o combate ao mal perpetrado contra crianças (até aos 18 anos) e menores (até aos 21), mas não esgota, em si, o problema, urgindo reestruturar as mentes, alavancar uma ordem cultural de olhar este mal e debelar as práticas tradicionais nocivas ao interesse superior da criança.

Defende o jurista que tudo se pode efectivar com um comprometimento colectivo, envolvendo todas as forças vivas da sociedade.

Escasseia cultura de denúncia

Para o jurista, escasseia a cultura de denúncia, mas esta não se concebe de si própria, necessitando de ser antecedida pela cultura de entender a essencialidade de o consentimento para uma relação conjugal ou similar ser estritamente pessoal.

Explica que será na cultura de entender o mal que residirá uma outra face de combate. Um processo que exige ingressar na diversidade sociocultural do país e criar uma estrutura sólida com base nos princípios legais, sendo os cruciais o de superior interesse da criança e da sua autodeterminação progressiva para actos relativos ao casamento ou relação similar.

Para Malunga, esta tarefa compete a todos, desde a família às instituições. Para uma criança, a liberdade neste campo deve obedecer a uma cadência progressiva de aquisição de uma maturidade consagrada para querer e entender os seus actos. A criança (antes dos 18 anos de idade) não pode, de algum modo ser tida como madura para avaliar as consequências de uma escolha para casar.

JOANA MACIE