RÉGIO CONRADO: “DEVEMOS CONTINUAR A ‘ENDOGEINIZAR’ O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA AGENDA NACIONAL”

Régio Conrado, Professor universitário, Jornalista, filósofo, Jurista, Cientista Político e critico d’Arte, é um dos convidados para a terceira edição da revista ÁGORA, com o tema “Como Construir Uma Agenda Nacional Virada para o Desenvolvimento e o Bem-estar dos Moçambicanos”.

O académico defende que para termos uma Agenda Nacional, devemos trabalhar como Nação na consolidação da ideia da Unidade Nacional, do respeito e do amor à pátria, do interesse Nacional, da constituição de um projecto que englobe e respeite aquilo que são as grandes aspirações dos moçambicanos e na efectivação dos ideiais inerentes ao projecto subjacente à independência nacional. No entanto, chama a atenção para que essas aspirações sejam contemporâneas ou modernas, ou melhor, que respondam às principais inquietações de hoje e do amanhã.

Para Conrado, desde 1990 o interesse nacional e o projecto de desenvolvimento nacional não estão suficientemente articulados ou claros para as populações, assim como para as pessoas que têm alguma lucidez para pensar num país com rigor, não obstante alguns elementos estratégicos concernente ao desenvolvimento do país estejam patentes na Constituição da República de Moçambique assim como nas diferentes Estratégias Nacionais de Desenvolvimento (2015-2035).

Conrado lembra que o projecto nacional foi concebido primordialmente com a possibilidade da construção de um Moçambique em que todo e qualquer cidadão pudesse sentir-se confortável, comprometido e adjudicado a este propósito. Porém, infelizmente te, todo o processo de construção da Unidade Nacional fica refém das lutas pelo processo de apropriação e acumulação primitiva do capital, que consiste, sobretudo, no acesso pelos que detém o poder e os mais importantes recursos nacionais. Este processo, defende ainda o académico, é fundamentalmente usado como mecanismo, deveras vezes, de enriquecimento individual, mas também, de promoção ou de pro tecção dos interesses de grupo, e isto pode ser classificado como neo-patrimonialismo ou prebendalismo nacional. Convidamos o nosso leitor a acompanhar a entrevista na íntegra.

 Como construir uma Agenda Nacional com que se identifiquem todos os moçambicanos?

Devemos, antes de nos atermos à reflexão mais profunda sobre a questão que coloca, começar por dois prolegómenos. Primeiro, uma das questões que devemos as sumir, com a decência intelectual devida, é que se em 1975, com a proclamação da independência, havia uma dupla clareza do que é que se poderia pensar por um país, hoje parece que o que caracteriza Moçambique é a inconstância no que tange ao referencial do desenvolvimento do país e sobre o destino que queremos dar à Moçambique.

Por um lado, a questão da defesa e da construção da unidade nacional estava suficientemente bem definida, e por outro lado, o engajamento pela construção do espaço nacional, que era um projecto de transformação estrutural de Moçambique, porque era a partir disso que se projectava o projecto nacional de desenvolvimento.

O segundo aspecto é que ficamos claros em relação ao modelo de sociedade que devia ser construído em Moçambique. Assim, dois pilares fundamentais existiam: a questão da Unidade Nacional como estruturação da consciência nacional (Ernest Renan) e da Construção do Espaço Nacional tal como foi pensado por Lenine. O primeiro pilar constituía um dos pilares essenciais depois da proclamação da Independência Nacional, pois dele é que se faria a unificação dos diferentes povos de Moçambique. O segundo pilar é que daria sentido propriamente moçambicano a este território inventado pelo colonialismo português.

Ora, morte do Presidente Samora Machel, em Outubro de 1986, implicou, primeiro, o colapso do nosso projecto interno de desenvolvimento orientado para os nossos interesses, e segundo a nossa adesão às instituições do Bretton Woods (Banco Mundial e FMI). Passámos, assim, para a fase neoliberal ou de economia de merca do, para não dizer do capitalismo selvagem, e outrossim para uma sociedade de democracia liberal. Todavia, desde 1990, Moçambique perdeu praticamente aquilo que é o eixo da construção do seu desenvolvimento baseado nas suas próprias prioridades.

Quer dizer que, por um lado, não está suficientemente claro qual é o projecto de desenvolvimento nacional, não obstante a existência de uma estratégia nacional de desenvolvimento (2015-2035), e, em que ele se funda. O segundo aspecto é que estamos a constatar que de 1990 à esta parte, a ideia da Unidade Nacional, do respeito, do amor à pátria, da constituição de um projecto que englobe e respeite aquilo que são as grandes aspirações da independência nacional ficou desmoronado, sem teor que mobilize ou convença os moçambicanos. O projecto nacional fundamental é a construção de um Moçambique em que todo e qualquer cidadão se sinta confortável, com prometido e adjudicado a este propósito. O facto é que, como podemos constatar, todo o processo de construção da Unidade Nacional fica refém das lutas pelo processo de apropriação e acumulação primitiva do capital, que consiste, sobretudo, no acesso pelo poder dos principais recursos do país, como mecanismo, às vezes, de enriquecimento individual ou ainda de grupelhos criminosos infiltrados na máquina do Estado.

Falo outrossim do neo-patrimonialismo nacional no sentido que é dado pelo cientista político Jean-François Médard, o que significa que há uma confusão extrema na forma como o Estado Moçambicano é administrado, em que os interesses privados são confundidos com os interesses colectivos por aqueles que administram o Estado. Ou seja, a utilização do conceito de neopatrimonialismo permite reflectir, para o caso de Moçambique, a permanência de uma confusão entre a esfera privada e a esfera pública, ao mesmo tempo que evidencia claramente que já não estamos num ambiente em que os interesses colectivos se sobrepõem aos interesses privados, como foi na primeira República.

E, isto coloca em causa qualquer que seja o processo de construção de Moçambique, como espaço de Unidade Nacional e de progresso partilhado ou inclusivo. A Unidade Nacional é hoje mais um dispositivo discursivo, e, não necessariamente um aspecto concreto em que as populações sentem que ela tenha alguma utilidade.

 O que é que leva à existência de Moçambique?

É o facto de concordarmos que todos podemos viver juntos num espaço que é uma produção do processo de colonização. Ou seja, Moçambique é uma invenção colonial, onde as suas fronteiras são igualmente invenções coloniais, o que significa que o espaço nacional não existia praticamente. Como nos mostra o Historiador Réné Pélissier com os seus dois volumes do “Naissance du Mozam bique”, Moçambique é um aglomerado de povos com trajectórias e culturas diferentes. Este aspecto leva-me a dizer que o processo de construção nacional deve ser o “plebiscito de todos os dias”, para usar a expressão do historiador e filosofo francês, Ernest Renan. É este o trabalho que foi feito pelos libertadores, como Eduardo Mon dlane, Samora Machel, Marcelino dos Santos, Armando Guebuza e outros, pelo partido Frelimo de 1975 a 1990. Nesse período, tentou-se construir um espaço nacional e um projecto de desenvolvimento nacional que consistia em convencer cada moçambicano a participar deste projecto, que de veria ser útil para cada um, mas de 1990 para cá, estamos a constatar que, de facto, não só grande parte dos moçambicanos não consegue ter os resultados das reformas que foram feitas, mas o mais grave é que vivem na paupereza, penúria e na miséria. O país de 1990 para ca, usando os trabalhos de Bayart, de Ellis, Daloz, podemos sugerir que Moçambique tornou-se um país do Big man, do businessman sanguinário e descomprometido com a nação, da destorção do processo de desenvolvimento nacional. Ademais, agravou-se o discurso étnico, instrumentalizado aos serviços de interesses que são contrários ao espaço colectivo.

O outro aspecto que me parece profundamente importante, que foi talvez um grande erro de cálculo, mas que podia ser estratégico para os grupos animados pela acumulação de recursos, em 1990, ao decidirmos enveredar pela economia de mercado, por um Estado mínimo como nos sugerem os juristas Chevalier, Bauby e Dziomba, quer dizer, por um Estado não necessariamente interventivo na economia e menos ainda na concepção dos grandes programas de desenvolvimento. Há duas observações a fazer: Todas essas reformas neoliberais desde 1990, como mostrei nos meus trabalhos, resultaram em desastre económico, social, ambiental e político para grande maioria dos moçambicanos. Ademais, constata-se que grande parte dos moçambicanos não tinham capacidades nem competências intelectuais ou técnicas para poderem participar numa economia de mercado, que exige conhecimento técnico, e mormente, um conjunto de competências para uma par ticipação efectiva. Usariamos a expressão do Banco Mundial, capital humano, para dizer que em Moçambique não tínhamos condições para o tipo de economia que decidimos seguir. Por isso que em termos de desenvolvimento e de efeitos positivos, houve o que Alain Minc cha mou de “La grande illusion”.

 “Economia de mercado implica ter uma

sociedade informada, formada e educada”

O que isso implicou ou implica?

Em 1990 grande parte da população moçambicana não tinha competências, ou melhor em termos de capital humano estávamos muito aquém do que se poderia esperar para uma economia de mercado. Então, como é que podemos explicar a construção de um Estado que praticamente delega grande parte das suas responsabilidades ao mercado quando os rudimentos para o sucesso dessa empreitada estavam ausentes? Quer dizer, primeiro, que este modelo de Estado é contrário à realidade social, política, económica de Moçambique. Sendo contraditório com aquilo que é cumus da sociedade moçambicana, obviamente que é contrário aos interesses colectivos fundamentais. Este é o segundo problema.

O terceiro problema, que também deve ser visto com profunda atenção, é que o processo da Constituição, no sentido que o sociólogo Giddens dá à esta palavra, de Moçambique pós-90 é, no plano discursivo, orientado para a Reconciliação Nacional, para a construção e a constituição da cultura de paz, mas também, e, mormente, para a consolidação daquilo que podemos chamar de espírito nacional, no sentido que Fichte e Hegel dão a esse conceito. Dos três aspectos retrocitados, fica claro que não podem, em nenhuma circunstância, serem efectivados quando o modelo de desenvolvimento projectado pós-90 não corresponder às reais questões e aspirações dos moçambicanos. A impressão que ficou é que desde 1990 a ideia do multipartidarismo, da democracia liberal, da liberalização política, não trouxe os frutos que aparentemente devia ter trazido, que era de permitir que todo e qualquer moçambicano, quer na posição, quer na oposição, quer nas zonas rurais quer nas zonas urbanas pudesse, com a sua dignidade, capacidades e competências aceder ao Estado, ao desenvolvimento, à dignidade. Podemos dizer que este processo criou o que Joseph Stiglitz chamou de “grande desilusão”. Urge acrescentar que um dos principais elementos que caracteriza Moçambique massivo e radical controle do poder por grupos totalmente contrários aos interesses nacionais, situação que cria riscos e conflitos em Moçambique. O Professor Conrado diz que Moçambique abraçou o sistema de economia de mercado (1990), numa altura em que grande parte da população não tinha competências para tal.

 Isso não terá criado condições para o aproveitamento pelos países que apoiaram o país na sua implementação e que ditou o fracasso que estamos a assistir?

Não tenho dúvidas que se tratou de um grande erro estratégico para o desenvolvimento integrado e de longo prazo para Moçambique. Todo e qualquer processo de reforma que não leva em consideração as condições efectivas de funcionamento de uma sociedade concorre para o seu próprio fracasso tal como vimos com o desastre que foi o PRE em muitos países africanos. Na minha tese de doutoramento mostrei que as reformas neoliberais em África minaram as possibilidades para a concretização dos próprios dispositivos das políticas neoliberais, pois o interesse não era a efectivação real desses dispositivos, mas apenas a criação de condições para tornar cronicamente dependentes os Estados Africanos para melhor explorá-los e colocá-los sob tutela. Os países ocidentais, por meio de suas organizações e instituições, ao imporem tais reformas não era para desenvolver o nosso país. Pelo contrário,fizeram-nos, pois queriam ver seus interesses geo-economi cos e geo-políticos efectivados ou facilitados. Ao desmante larem o Estado, imporem uma economia liberal ou de mer cado, flexibilizarem as nossas políticas fiscais, o nosso direito económico, fiscal e aduaneiro criavam as condições para que os seus Estados e instituições ocidentais espoliassem o essen cial da nossa riqueza. Quando incitavam tais reformas tinham completa consciência que, em Moçambique, não havia empresas privadas aptas a competirem com as multinacionais ocidentais, que o Estado moçambicano não tinha capacidade nem para controlar e con trapor os interesses dessas multinacionais, que são empresas predadoras, que os moçambicanos não tinham nem competências menos ainda conhecimento para melhor se posicionarem estrategicamente numa economia de mercado. A título ilustrativo, até hoje não se pode falar de sector privado moçambicano, ou de empresas nacionais com capacidade para competirem ao nível regional e internacional. A fragilidade do Estado, dos recursos humanos, de competência das nossas administrações cria ou favorece o sucesso dos interesses ocidentais, em particular, e dos estrangeiros, em geral, em Moçambique, pois esses encontram um terreno fértil para a sua implantação sem responsabilização. Assim, podemos, efectivamente, dizer que a implantação de uma economia de mercado, ou melhor de um capitalismo selvagem, nas condições em que Moçambique se encontrava não poderia levar a resultados económica e socialmente viáveis, pois estava óbvio que quem se beneficiaria dessa economia era um punhado de moçambicanos ligados ao Estado, muitas vezes desconhecedores do funcionamento da economia de mercado, e as multinacionais, organizações e Estados ocidentais. Os Moçambicanos comuns, que são a maioria, muitos deles analfabetos ou não formados segundo os canones das necessidades de uma economia de mercado, estariam, como estão hoje, fora do mercado formal ou daquilo que constitui a famosa economia de mercado tal como é definida pelas organizações da Bretton Wood. Diante dessas situações todas, fica evidente que as reformas neoliberais e os seus dispositivos não tinham condições para serem bem sucedidas, por um lado, porque esse nunca foi o verdadeiro interesse dos proponentes dessas reformas, e por outro lado, porque os moçambicanos e o seu Estado estavam gravemente incapacitados para participarem em situação de vantagem comparativamen te aos ocidentais. Podemos ver isso com a exploração do Gás em Cabo Delgado.

“Elites nacionais agem como aves de rapinas”

Os profissionais mais qualificados são quase todos estrangeiros. Isso mostra, mais uma vez, que a nossa estrutura económica e estrutura de organização desenvolvemental é nefasta para os nossos interesses nacionais. Ade mais, quero ainda recordar que a economia de mercado não afectou apenas o sector puramente económico, ele igualmente abriu espaço para aquilo que se designa na antropologia e sociologia de desenvolvimento de “indústria de desenvolvimento, onde as ONG ocidentais inundaram o nosso país, inundando concomitantemente o mercado de trabalho dessa indústria com expatria dos, nem sempre competentes, a desfavor dos nacionais. Para isso, basta ver que as posições-chave na maioria das grandes instituições e ONG internacionais são ocupadas por estrangeiros, maioritariamente ocidentais. Isto coloca um grave problema em termos de desenvolvimento, pois, como mostrei nos meus trabalhos sobre impacto da ajuda pública ao desenvolvimento, esses indivíduos estão, deveras vezes, descomprometidos com os problemas reais de Moçambique. A liberalização do mercado de trabalho em Moçambique, com o recrudescimento da nossa dependência, aprofundou ainda o desastre que essas reformas trouxeram para Moçambique. A situação moçambicana é igualmente observável no Senegal, Zâmbia, Costa-de-Marfim, Angola, só para citar alguns, pois tal como em Moçambique, nesses países os locais viram subordinados, apêndices dentro da economia de mercado.

Pode-se dizer que este controlo excessivo e radical do poder contribui para os conflitos sociais que temos estado a assistir?

É ostensivo que nas circunstâncias acima arroladas temos como consequências, conflitos sociais massivos, espírito de vingança e até de um certo espírito de separatismo, como estamos agora a constatar em determinados pontos do país, onde se começa a ver reavivamento dos discursos regionais, étnicos e comunitários, cujo objectivo fundamental é dizer que por causa da incapacidade do Estado de providenciar o desenvolvimento para todos, é melhor que capturemos a parcela de terra que nos pertence, para podermos construir a vida em função das regras e princípios que nos condizem. Esse espírito não é recente. Temos que reler René Pélissier, “O nascimento de Moçambique”, para entendermos que esse espírito é profundamente antigo, mas está a se agudizar por causa das contradições daquilo que são as linhas de governação, de desenvolvimento nacional, de progresso nacional e, por consequência, a deterioração da Unidade Nacional, do patriotismo, do contra-interesse nacional, dos parasitas nacionais. Hoje, está evidente que Estado e o sector privado nacional respondem muito pouco aos desafios nacionais. Se não respondem a interesses de minorias políticas e económicas, respondem ao capital internacional, o que contradiz com os interesses nacionais essenciais, como diria Bem Yacné- Touré no seu livro “Afrique à l’epréuve de l’indépendance”. Estamos a falar de um país que está inde pendente há 50 anos… Não se pode esperar nem a cultura de paz, nem a reconciliação, muito menos ainda a dedicação de cada moçambicano em relação à ideia da unidade e construção do espaço nacional sem que as elitesnacionais se mostrem exemplares na promoção dos interesses nacionais. A impressão que fica é que as elites nacionais agem como aves de rapinas. É por isso, por exemplo, alguém que se encontra em Mecúla, província do Niassa, não pode estar comprometido com o projecto nacional, enquanto o Estado Central não lhe consegue colocar um hospital, um sanitário público, uma escola, ou ainda que não lhe dá a dignidade de viver e beneficie do facto de ser moçambicano. o mesmo exemplo se aplica para quem se encontra em Zumbo, província de Tete, ou em Nipepe, Niassa. Os povos que vivem nestes lugares não tem a mesma percepção do país comparativamen te ao que mora na Polana, Sommerschield, Triunfo, Tchumene, Belo horizonte (Cidade e Província de Maputo), etc. Quem é que vive nesses lugares? São gru pos específicos que tem acesso ao Estado, aos dinheiros e aos benefícios do Estado. As benesses estão concentradas de forma muito estrita a este grupo. E dessa situa ção, a impressão que fica é que o Estado não está a ser suficientemente útil para os interesses da maioria que se encontra fora da esfera do Estado. Nessas condições, es tamos a dizer que, de forma estrutural, em Moçambique, não está claro o projecto nacional, não estão claras as decisões dos dispositivos que devem ser implementados que deveriam promover o interesse nacional e, sobretudo dos moçambicanos que vivem em situação de penúria, nas ditas periferias. Esta situação cria o que o cientista político e antropólogo americano chamou, no seu livro Domination and the Art of domination: hiden transcripts”, de “arts of resistance”, “a confrontação dos que têm poder e dos que não tem poder”. Como pode constatar, es sas desigualdades extremas, no contexto de Moçambique, existem também por causa da ausência, hoje, de uma concepção solidária da construção de Moçambique e do próprio Estado moçambicano. Quer dizer, com o princípio da solidarieda de,que era uma das características funda mentais da Primeira República em Moçambique, muito dos problemas actuais teriam sido minimizados ou socilizados. Hoje, esse princípio não passa de um mero discurso, o que contribui para o sentimento crónico de decepção em relação à independência na cional assim como ao projecto de reformas que iniciaram, de facto, em 1987, mesmo que algumas inovações tenham iniciado em1984. Então, nestas circunstâncias, não se pode esperar mais do que aquilo que está a acontecer, que é a agudização do discurso étnico e separatista, de revoltas e conflitos sociais alargados, da violência do Estado, do decréscimo da legitimidade dos diri gentes do Estado, da Administração, entre outros aspectos. Como se pode constatar, o país está em tensão, incluindo dentro das próprias cidades, onde, aparentemente, as pessoas deveriam ter acesso ao Estado. As desigualdades sociais são profundamente graves e gravosas. Portanto, o processo de distribuição da riqueza nacional não só é contraditório em relação aos objetivos fundamentais, mas sobretudo, acaba sendo cí nico porque o discurso de que é necessário sermos moçambicanos, sem a distribuição de riquezas, cria sempre uma tensão entre os grupos sociais detentores do poder e os que não têm poder.

 

“Abertura social do poder e das oportunidades

deve ser um dos critérios basilares da presente governação”

Qual é a solução que a academia apresenta-nos para esta situação?

Dos aspectos aqui enunciados, que decorrem de estudos massivos que fomos fazendo em Moçambique que e, sobretudo, no norte do país, em países como o Niger, Ghana, Mali, Chade, pode-se indicar como primeiro grande desafio para o recém-eleito Presidente da República, a recolocação da Unidade Nacional como acto concreto no centro de todas as intervenções, reformas no Estado e na Governação que tornem ambos consentâ neos com os desafios e problemas actuais de Moçambique. O novo projecto de desenvolvimento tem que ser olhado como a reestruturação, a reconstrução do contrato social moçambicano que está em situação de ruptura. O segundo grande desafio, é a reposição dessa Unidade Nacional como um contrato, para que o povo volte a ter confiança em relação à sua pátria, ao seu país, ao seu Esta do, à sua administração pública e, sobretudo, em relação aos seus governantes. O terceiro aspecto fundamental é inerente ao proces so de governação que reponha o princípio da abertura social do po der, para que todo e qualquer mo çambicano entenda que o acesso ao poder, ao Estado, às oportunidades não depende de ser da etnia Nyungwe, Makonde, Ndau, Sena, Changana, ou outra etnia, mas apenas a partir da meritocra cia. O moçambicano deve com preender que a única coisa que o caracteriza como ser Nacional, é ser moçambicano e por sê-lo pode aspirar a aceder às oportunidades, aos benefícios que a pátria é capaz de oferecer a todo e qualquer um. Recolocar a ideia de um Estado so cial comprometido com o interes se nacional é, hoje, um imperativo categórico (Emmanuel Kant) para a construção da paz social e política. Ademais, as oportunidades sociais, profissionais e políticas abertas para todos deve ser um dos ele mentos basilares, para não dizer constitutivos, da presente governação de Moçambique, pois só daí, é que vai ser possível convencer a todos os moçambicanos de que é judicioso, necessário e útil “lutar por Moçambique”, para fortificar a ideia da pátria e o patriotismo. Isso abreria espaço para dar sentido à ideia de dedicar-se ou compro meter-se com o país e ao mesmo tempo a garantia da sua dignidade e a base para o progresso individual e colectivo. Penso que aqui é que se efectivaria a plena da nos sa independência assim o sentido que Eduardo Mondlane dava ao processo libertário. Nestes termos, Moçambique não só se torna uma projeção para um futuro brioso, mas também o orgulho de todo moçambicano. Penso que Guebuza ao formular a ideia de “pérola do índico” era para dar sentido à essa vontade nacional. Infelizmente, hoje, a impressão que fica é que muitos já não entendem o sentido de pátria e de Unidade Nacional, pois há uma percepção profundamente negativa vinda de uma franja importante dos moçambica nos sobre quem se beneficia dos recursos. Penso que as canções do músico Jeremias langa, do Azagaia, e outros, são um reflexo dessa per cepção geral. Enfim, diria que é necessário um diálogo social nacional em que todos os moçambicanos são con vidados a discutir o que é que se pretende com Moçambique e que tipo de projecto nacional de desen volvimento se pode construir. Tudo o que se fizer sem esse diálogo na cional sincero, não logrará o devido sucesso, pois vai representar a von tade de um punhado de pessoas completamente desconectadas do real social e económico de muitos moçambicanos que vivem sevi ciados pela mingua, pela agressão da fome, pela violência da péssima educação, saúde, etc. É necessário ouvir as aspirações dos moçambi canos, na sua diversidade, das suas diferenças, sejam ideológicas, políticas, étnicas, sociais, etc. O silêncio do Estado em relação aos proble mas nacionais é, de per si, uma agressão aos fundamentos que nos levarão a construir o Estado Nacio nal baseado nas nossas próprias realidades e não virado a ser um instrumento ao serviço de interes ses que agridem os moçambicanos comuns.

Será que o modelo neoliberal Es tado (Estado mínimo) que confia grande parte das prerrogativas ao sector privado é adaptável à reali dade moçambicana onde 60% dos seus habitantes vivem em situação de precariedade social?

Essa é uma questão que nós devemos colocar à toda sociedade. Se a resposta for negativa significa que devemos repensar completamen te o modelo e estatuto de Estado em Moçambique. Em todo caso, os resultados dos estudos feitos sobre Moçambique nos últimos 25 anos, por exemplo o livro Trans forming Mozambique: the politics of privatization de Anne Pitcher e Peace Without Profit: How the IMF Blocks Rebuilding in Mozambique de Joseph Hanlon,mostram que este modelo não produziu resul tados esperados, por razões que eu expliquei mais acima. e então, é necessário que o próximo chefe do Estado tenha a capacidade de re-discutir profundamente o papel do Estado na nossa economia, por que na situação em que nos en contramos hoje mostra que temos um Estado predador, como diz o jurista e cientista político francês Dominique Darbon. Ademais, ape nas para ilustrar, constatamos que as empresas que deveriam ser públicas ou privadas maioritariamen te participadas pelo Estado, muitas vezes, são privatizadas, e alguns dos recursos estratégicos do país encontram-se nas mãos, maiori tariamente do capital estrangeiro, com algumas ligações com um pu nhado de nacionais improdutivos, para fazer referência aos traba lhos do historiador francês Michel Cahen e do economista moçambi cano, Carlos Nuno-Castelo Branco. Nessas circunstâncias, onde é que o Estado moçambicano, sendo mínimo, vai buscar dinheiro para poder investir, por exemplo, nas Forças de Defesa e Segurança de Moçambique, da saúde, da edu cação, que não constituem um sector produtivo, mas fazem parte daqueles sectores que precisam de investimento massivo do Estado. Importa outrossim fazer referên cia que não haverá nenhuma paz, nenhum desenvolvimento nacional enquanto as nossas Forças estive rem profundamente frágeis e sem recursos para poderem investir em equipamento e material bélico mo derno, seja letal ou não letal, capaz de garantir a nossa segurança na cional, que é a outra prioridade na cional inquestionável. Gostaria de acrescentar que a situação em que nos encontramos, hoje, de ultrali beralismo periférico, leva a que os “Estados predadores” ocidentais, mas não só, no sentido que é dado por François-Xavier Carayon no seu livro “Les États Prédateurs…”, controlem o essencial da nossa eco nomia pela captura dos sectores críticos da nossa economia, pelo controle de recursos estratégicos, etc. A título ilustrativo, podemos falar do sector bancário. Sabemos que ele está fundamentalmente sob controle de actores estrangei ros que funcionam como agiotas legalizados. O ultraliberalismo pro movido pelas instituições ocidentais é letal para Moçambique, pois dele Moçambique aprofunda a sua desintegração, fragilidade, depen dência e submissão. Precisamos de protecionismo estratégico como qualquer outros que se preza. Essa é a tendência até nas economias ditas mais avançadas e liberais. Os americanos que se dizem os campeões do liberalismo, tem um conceito que é o de “national se curity” que engloba, no seu seio, as questões meramente econó micas de proteção de interesses nacionais. Penso que é necessário que saiamos da nossa hibernação intelectual e tomarmos medidas concretas para evitar que o nosso desenvolvimento, crescimento e progresso esteja comprometido e sob tutela de predadores interna cionais com apoio nacional. O neoliberalismo enfraqueceu-nos e esfaqueou as reais possibilidades do nosso direito ao desenvolvimento integrado. A situação moçambicana encontra uma bela descrição nas reflexões de Walter Rodney “How Europe Underdeveloped Africa, Walter Rodney.

Então está a propôr a re-discussão da questão da Segurança Nacional?

Ostensivamente que sim, pois a forma como estamos a discutir esta questão hoje não me parece ainda consistente, mesmo que eu veja excelentes sinais nas nossas Forças Armadas. A questão da segurança no pós-1992 está lon ge de ser sistemático, estratégico e de longo prazo. Fiz um trabalho de pesquisa sobre as capacidades das FDS e suas capacidades táti cas em Cabo Delgado para uma organização europeia; Nesta pesquisa constatei infelizmente que o desmantelamento do Estado “desenvolvimentista” criou graves problemas na fortificação da nossa segurança que nos últimos trinta anos tinha recebido pou cos senão nenhum investimento de vulto. Apenas com Guebuza, essa questão volta à tona. Hoje, questão da seguranca voltou ao centro do debate por causa, so bretudo, do recrudescimento do conflito em Cabo Delgado. Há nisto uma demonstração que a Defesa e Segurança em Moçam bique estão longe de ser pensa das com a seriedade que deveria, não tanto por incompetência das nossas FDS, mas negligência do poder político e por pressões das instituições ocidentais que jul gam que não é urgente investir nas FDS. Moçambique tem cerca 2.700 quilómetros quadrados de costa, ou um pouco mais de 801 quilómetros quadrados de terri tório. É um país enorme, por isso complexo. Estamos numa região que é estável de forma geral. Mas, a nossa posição é de risco perma nente. Nós somos um país com múltiplos recursos naturais, isto não nos deixa necessariamente em situação de paz, pois, os interesses de vários grupos, nacionais e internacionais, convergem na na luta pela exploração dos mesmos para beneficio próprio e não para o desenvolvimento nacional. Nes tas lutas, muitos são os que não querem um Estado forte, com uma segurança robusta, ou seja, quan to mais frágil for o nosso Estado e a sua segurança melhor para o banditismo organizado e o pro cesso de espoliação dos interesses nacionais. É preciso perguntarmos qual é o tipo de defesa para o Moçambique do século XXI. E qual é o tipo de investimento imperativo a fazer. Onde vamos ter o dinheiro para fazermos tal investimento? Sem responder directamente à estas questões, o facto é precisamos de ter fontes que nos permitam tais investimentos massivos na Segurança Nacional. Isto tem que ser uma das prioridade. Expliquei que é preciso reconfigurarmos e transformarmos a forma como estamos a conceber o papel do Estado na estrutura económica e seguirmos alguns dos exemplos de países, por exemplo, como a África do Sul, a Tanzânia, Angola, Marrocos, Egipto, Argélia onde os setores-chave da economia nacio nal são directamente controlados pelo Estado ou indirectamente por via de suas participações. Nas situações em que nos encontra mos, um Estado desenvolventista, interventivo é um imperativo para a nossa própria sobrevivência.  Esta entrevista foi publicada na terceira edição da revista ÁGORA – Março/Agosto 2025