Bonga, afirmou ainda que “o grande problema que temos é o nosso preconceito. Existem jovens que não sabem o que é uma moamba e outros até conhecem, mas têm vergonha de admitir que conhecem. Isso é muito triste e dá-me muita pena”.
José Barceló de Carvalho, conhecido como Bonga, nasceu em Kipiri, na província do Bengo, a norte de Luanda, em Angola.
A sua infância foi passada em bairros como os Coqueiros, Imgombotas, Bairro Operário, Rangel, e no Marçal. O folclore dos musseques (bairros pobres) cedo fascinou o pequeno Barceló de Carvalho e por isso começou a frequentar e a participar das turmas dos bairros típicos de Angola, onde iniciou a sua actividade musical.
Foi no bairro do Marçal que fundou o grupo “Kissueia“. Barceló resolve criar o seu próprio estilo musical, afirmando a especificidade da cultura angolana, numa época muito conturbada.
Bonga é produto de uma geração aguerrida e marginalizada que resiste à aculturação da sociedade marginal através do respeito pela música tradicional de Angola. A cultura angolana era dominada pela colonização portuguesa de então (Estado Novo), daí que tanto a língua como a música tradicional fossem discriminadas e impedidas de se manifestar em plenitude. Acompanhe a entrevista na integra.
Quem é Bonga?
José Adelino Barceló de Carvalho é o meu nome completo. Mas é Bonga Kwenda que funciona a 100 por cento, que me fez descomplexar, para valorizar as nossas origens.
Com que idade saiu de Quipiri?
Nasci em Quipiri, mas como os meus pais viviam em Luanda, passei parte da minha vida entre Luanda e Caxito. Por isso, não consigo dizer, com precisão, quando é que, de facto, sai de lá. É lá que estava uma boa parte da minha família, o que justificava as nossas idas constantes para lá, mesmo vivendo em Luanda, onde o meu pai trabalhava.
Como era mais conhecido na juventude?
Zeca ou Barceló de Carvalho. Deixei de ser Zeca e passei a ser Barceló de Carvalho quando fui para o Benfica. E passei de Barceló de Carvalho para Bonga quando gravei o primeiro disco, em 1972, na Holanda, num estúdio muito conhecido naquele tempo, de um cabo-verdiano, que gravava os discos de vedetas como Luís Morais, Voz de Cabo Verde e muitos outros.
Depois do disco Angola 72, nunca mais parei. Tem boas memórias dos musseques de Luanda?
Sim. Primeiro, do Marçal, embora tenha passado, também, pelo Bairro Operário e Rangel. Esses são as grandes referências da minha vida. Grande parte das famílias de Luanda estava dividida entre estes bairros. Apesar de viver no Marçal, andei por todas essas zonas não apenas para namorar, mas também para estabelecer intercâmbio cultural e desportivo, entre moradores de uma e de outra zona.
Quais são os valores que mais preza?
Os valores de família, acima de tudo. Foi assim que conseguimos preservar e defender o que é nosso. Foi com esse tipo de atitude, que homens e mulheres conseguiram preservar o que ainda resta dos nossos hábitos e costumes. Digo mulheres, porque foram elas que conseguiram proteger a nossa gastronomia e não só. Se hoje conseguimos comer um bom funge, muzongue, mufete, tchicuangua, entre outras, é porque elas existem. O grande problema que temos é o nosso preconceito. Existem jovens que não sabem o que é uma moamba e outros até conhecem, mas têm vergonha de admitir que conhecem. Isso é muito triste e dá-me muita pena.
De onde vinha esse preconceito?
Os brancos, por natureza, discriminavam os pretos. Eram racistas dentro da nossa terra, que não lhes pertencia e, atrás desses, vinham os assimilados, que tudo faziam para proteger os seus lugares. Era muito triste. O complexo era tanto que alguns dos nossos patrícios evitavam ir para os musseques visitar parentes próximos, como mãe, por que não queriam sujar os sapatos ou se misturar com pessoas da sua própria cor.
Quem eram os assimilados?
Na maioria, eram funcionários públicos, com fortes ligações aos colonos. Quem vivia nos musseques era chamado de pé descalço e quem residia nos chamados bairros melhorados, como Cruzeiro, Café, Vila Clotilde, Vila Alice, entre outros, era gente de boa família. No tempo colonial, já combatíamos essas práticas nefastas, alimentadas pelo colono, para criar divisões no nosso seio. Na escola, a religião, com os seus dogmas, aparecia em primeiro lugar que as ciências, numa espécie de lavagem de cérebro.
Pode fazer um retrato do Marçal do antigamente?
O historial do Marçal, como de todos os bairros da periferia de Luanda, tem princípio, meio e fim. O pai era pai e o pai do vizinho também podia ser seu pai. Podia ralhar contigo. Hoje quando digo isso para as pessoas, elas ficam admiradas e boquiabertas. As nossas frutas de vontade, que apanhávamos na rua, porque todas as casas tinhas árvores, eram o nosso lanche. Caju, tamarino, manga, goiaba e muitas outras encontrávamos nos carreiros por onde passávamos. Em casa tínhamos doces de ginguba, de coco, pirulito, kikuerra, matete de milho e muitos outros. A famosa velha Faraja do Marçal cozinhava o sarrabulho para os kotas, que eram acompanhados de gentes vindas de outras paragens, incluindo os assimilados, que corriam para consumir o precioso alimento. Era considerada a melhor neste tipo de comida que, apesar de ser confeccionado em tambor, a procura era tanta, que nem sempre chegava para todos. Eram pessoas que valorizavam as nossas coisas, as nossas raízes. Se perguntares, hoje, a um jovem o que é matete de milho, pode não saber. Isso para não falar de outros produtos que eram comercializados pelas nossas quitandeiras, que andavam pelas ruas de Luanda com o balaio à cabeça para a venda ambulante de frutas, peixe e muitas outras iguarias.
Havia jogos de futebol entre os bairros?
Sim. As partidas de futebol eram realizadas no campo do Machado, no Bairro Operário, ou próximo da antiga estação dos musseques e no campo do São Paulo. Alguns, como eu, praticavam também o atletismo e outros faziam saltos.
Pode citar algumas das grandes referências desses tempos? São muitos, mas posso citar o Quim Jorge, Abel Murimba Show, Joana Arantes, Teresa Chitete, Joaquina Empurra, João Citron, Zeca da Raiz, Velho Sambo, que tinha uma orquestra musical, João Físico,AlbinaAssis,António e Manuel Faria de Assis. Fazíamos desporto juntos, comíamos ngonguenha e kikuerra, íamos apanhar frutas e caçar pássaros juntos. Lembro, também, da Dina Santos, Mulumba, Joaquim Jorge (Botafogo), Kituxi, Bangão, Liceu, Fontinhas, Burity, Teófilo e Ziza, na Poesia.
Conviveu muito com essas pessoas?
De forma directa ou indirecta, convivi com elas durante as minhas andanças pelos bairros de Luanda. Mas tínhamos outras figuras de referência, como o cónego Manuel das Neves. Quando falo de pessoas que marcaram a época, como Zeca da Raiz, Abel Morimba e muitos outros, falo de uma nata de cidadãos aguerridos e grandes batalhadores daquele tempo, que o país nunca entendeu e nem homenageou. Eram indivíduos com uma pujança indescritível. Eram pessoas que tinham as coisas no lugar. Defendiam-nos da tropa colonial, dos malfeitores, muitos vindos do exterior. Bastante imaginativos e criativos, mas que nunca foram reconhecidos, porque eram analfabetos, infelizmente.
Tinha alguma relação com Cônego Manuel das Neves?
Sim, porque o meu pai foi escriturário na Câmara Eclesiástica de Luanda, que funcionava no Palácio da Colina, onde residia o arcebispo de Luanda. Mas existem outras figuras como D. Alexandre do Nascimento e Joaquim Pinto de Andrade.
Considera-se um homem de fortes convicções?
Desde há muito tempo que me considero um homem de fortes convicções, que não aceita que ninguém me venha inculcar coisas na cabeça, em forma de lavagem de cérebro. Essa minha coerência e persistência valeram essa galeria de troféus que estão aqui. São os primeiros 23 anos da minha vida que forjaram o cáracter temperamental e intenso que tenho e que muito me anima. E é por causa disso que eu continuo a cantar a nossa música. Vai muito a Angola? Uma ou duas vezes por ano. É mais fácil ir à França ou aos Estados Unidos da América do que a Angola. Os convites para realizar espectáculos aparecem mais desses país do que do nosso. Já houve tempo em que fui mais vezes para Angola. Luanda era uma cidade com algumas cacimbas, muito frequentadas pelos nativos.
Também brincou nas cacimbas?
Claro que sim. Tínhamos duas cacimbas em Luanda, onde eu e alguns amigos íamos muito, uma ficava ali onde é a Cidadela Desportiva e outra no Cassequel, atrás da minha casa.
Também morou no Cassequel?
Morei no Cassequel, muito próximo da cacimba que ficava a escassos metros do actual Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro.
Como se chamava essa cacimba?
Cacimba do Voto Neves. Ali mesmo havia uma outra, onde íamos buscar águas que consumíamos depois de fervida. Era uma altura em que não tínhamos água potável em casa e tampouco luz eléctrica. Usávamos o petromax. Se quiséssemos consumir água potável, tínhamos que comprar na loja do branco. A água que comprávamos era transportada em barris e outros recipientes. O mesmo barril que as nossas mães utilizavam para nos dar banho com lata e lavar roupa. Mas,olha, éramos mais limpos e mais bem tratados. Quando saíssemos, não nos faltava sandálias com peúgas brancas. Os nossos calções tinham o vinco bem alinhavado e a camisa bem engomada, com ferro de carvão.
Nesta altura já havia o Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro?
O aeroporto estava a ser construído, mas havia um nas imediações do actual Hospital Militar e a Maternidade.
Luanda hoje?
Gostaria que se continuasse a fazer mais para gerar mais desenvolvimento, tornarmo-nos mais felizes, mais homogéneos. Antigamente, o comércio em Luanda era controlado pelos kamundongos e angolanos, de uma maneira geral. Eram eles que vendiam a kissangua e o quimbombo. As senhoras vendiam quifufutila, kitaba, bombo com jinguba, kanjica, matete de milho e sarrabulho. Nem os brancos naquele tempo vendiam estas coisas.
Música: A primeira grande paixão
É músico, mas também já foi grande atleta. Qual das duas surgiu primeiro?
Tornei-me profissional no atletismo, depois de ter lançado o meu primeiro disco. Mas, olha lá, e aqui fica o alerta para as novas gerações, não nos tornamos artistas de pé para mão ou de um dia para o outro. Foram os primeiros 23 anos da minha vida em Angola que me tornaram o compositor e intérprete que sou hoje.
Já era músico quando saiu de Angola?
Quando sai de Angola já tinha o meu grupo folclórico, os Quissueias, que eu mesmo formei. Tocávamos com os Kimbandas do Ritmo e outros grupos que existiam naquele tempo. As nossas atenções estavam viradas para a valorização dos instrumentos nacionais. Sai de Angola como músico, mas não era profissional. Era apenas compositor e intérprete.
Como estavam organizados?
Nos Quissueias, organizávamos as coisas de forma a chamar atenção dos angolanos, para a valorização da nossa cultura, em primeira instância.
Hoje, a nossa cultura é valorizada?
Por norma, valorizamos muito pouco aquilo que chamamos de folclore, balé nacional, intérpretes dos musseques e muitos elementos que tinham uma participação profunda na cultura nacional, porque eram considerados analfabetos. O mesmo acontece com o Carnaval, que é a maior manifestação cultural que já conheci, em toda minha vida. Não havia, nos meus 23 anos de Angola, coisa mais empolgante que o Carnaval. Falo do Carnaval dos bairros, não aquele que desfila para o Presidente ou o governador ver. Falo dos tempos da Cidrália, dos Maiados, dos Invejados, do Kabocomeu, da Escola do Semba, entre outros. Sempre me bati pela valorização do que é nosso, porque havia muita gente que hostilizava o nacional e uns, como os Five Kings, cantavam Rock and Roll, para parecerem mais civilizados, mas assimilados ao lado dos brancos.
Acha que os nossos artistas não são valorizados?
Sim, porque existem artistas antigos que, apesar do contributo que deram para a nossa cultura, não são tidos nem achados.
Pode citar um exemplo?
Assim rapidamente, vem-me à cabeça o kota Prado Paim, de Caxito, meu conterrâneo, mas existem muitos outros. Encontra-se hoje numa situação de vulnerabilidade, porque nunca lhe foi dado a oportunidade para ascender e atingir outros patamares na vida, porque valor, é o que ele tem demais. São situações que prefiro não falar. É muito triste saber que existem valores em Angola e que, apesar do potencial, não são valorizados e tão pouco respeitados como deviam ser. São utilizados apenas quando precisam deles. Isso é muitíssimo grave. Num país que se preza, os artistas são sempre as primeiras referências. Verdadeiros cartões-de-visita.
Quantos instrumentos toca?
Toco vários instrumentos, mas tenho preferência pela dikanza e batuque.Aprendi em Angola, mas muita gente não acreditava. Por causa dos nossos complexos, houve uma altura, em Angola, que as pessoas que tocavam batuque eram consideradas atrasadas. A dikanza é o seu forte? É o meu forte, porque toco dikanza desde os 15 anos. Acompanhava o meu pai que tocava a concertina em ambientes de família.
Movimento cultural em Angola Como avalia o movimento cultural em Angola?
Há algum movimento cultural no nosso país? Não sabia. Ando à espera desse movimento, não apenas de um, mas de vários movimentos culturais em vários bairros da cidade de Luanda. Antigamente, havia os centros recreativos, como “Mãe Preta” “Maxinde”, “Marítimo da Ilha”, “Botafogo”, onde os Kimbandas do Ritmo actuavam, entre outros.
Onde estão esses espaços?
Eram os centros culturais que fomentavam toda uma vivência e preservavam a nossa tradição. Os grupos tocavam e cantavam as coisas actualizadas dos bairros, com música bonita, dançarinos, coreografia, folclore e não só.
Se hoje esses espaços não existem como podemos falar em movimento cultural? Está a dizer que não temos movimento cultural?
Há várias tentativas, mas desfasadas do bom senso e de competências. Sou de opinião de que, no plano da Independência, deveriam estar incluídas as coisas que nos animam e dão continuidade a nossa identidade. Isso é muitíssimo importante. Se você não escrever isso vou te xingar. (Risos)
O que é que acha que deverias ser melhorado em termos culturais?
Primeiro, temos de ser amigos e respeitarmo-nos mutuamente. Quando a relação é baseada no respeito mútuo, isso deixa sempre subjacente um propósito muito importante: o nacionalismo. Se não houver nacionalismo, você vai cantar Rock, R&B, sons das Antilhas e do Brasil, para satisfazer o brasileiro, porque as novelas têm uma grande influência na nossa terra. Hoje, se pedir a alguém para cantar o canto da terra da mãe, do pai ou do avô, que lhe levou ao colo, provavelmente, não vai conseguir. Nós tivemos educação de casa, dos pais, da rua, com velhos e os vizinhos que residiam à nossa volta, que nos orientavam em relação aos procedimentos que devíamos ter na rua e em casa. Se cometéssemos alguma asneira, esses davam-nos cocos na cabeça e puxões de orelhas e íamos a correr para casa, sem problema. Hoje, se fizeres isso, pode nem sequer passar-te pela cabeça a “nvunda” que vais arranjar.
Em termos culturais, o que gostaria ver realizado nos próximos tempos em Angola?
Primeiro, rebuscar ou criar motivações para o reaparecimento de todos os grupos que existiram antigamente. Me alegra o movimento ímpar que, em Luanda, está a revolucionar o surgimento de escolas da dikanza. Muito embora os ritmos ainda não tenham atingido a perfeição, considero o gesto de uma grande mais-valia para a nossa cultura. Mas é preciso pensar também nos outros instrumentos que temos, como cacoxa, que é a nossa cambanza (arco com uma linha), igual ao que Kamosso tocava, o hungu, a marimba. Pensar no relançamento dos Marimbeiros de Duque de Bragança, para citar só um caso. No bom sentido, queria ver em Angola uma explosão cultural que nos dê a possibilidade de demonstrarmos aquilo que realmente somos. Em vez de imitarmos o que se faz na Europa, em Angola deveríamos aproveitar a televisão que temos para a promoção da nossa cultura, com programas genuinamente nacionais, sem desprimor para a dança africana. Os nossos assimilados gostam muito de imitar as coisas que vêm de fora, que eles consideram clássico. Ali na Samba, os miúdos estão a aparecer com violinos…
Em defesa do semba
Considera o Semba a essência da música angolana?
Se eu disser que não, estaria a contrariar-me. Eu nasci, cresci, vivi e vivo o Semba.
Mas existem outros sons?
Se existem, então evoluam com eles, dêem promoção, desenvolvam a tónica musical para, posteriormente, fazermos uma avaliação daquilo que a gente vai ver e ouvir. Porque, por enquanto, é o Semba que manda que, para nós, foi sempre um factor de unidade, que dançamos no quintal com pé descalço e, lá fora, com os vizinhos na areia vermelha. É por causa disso que o Semba conseguiu sempre resistir às guerras internas que se moveram contra ele. Estou a falar do tango, rumba, boleiro, samba e baião brasileiro, merengue latino-americano e plena do Congo. O Semba teve que resistir a todas essas correntes, porque já naquele tempo havia a tendência de ouvir mais música do outro que a nossa. O nosso problema reside no complexo que temos de encarar a nossa realidade como ela é, preferindo imitar o que é do outro. Impõe-se neste momento uma mudança de mentalidade, que demora a chegar e nem sei mesmo quando vai chegar.
“Quintal da banda”
Quantos discos gravou?
É só somar, estão todos aí na parede. São 400 músicas de minha autoria, não existe coisa igual. Faço questão de não dizer o número de discos que tenho, porque penso que os angolanos têm obrigação de saber.
Para quando o novo disco?
O novo disco está aí a sair a qualquer altura. Neste momento estão a concluir os últimos arranjos. Vai ser lançado em França, como acontece com todos os meus discos, e só depois vão ser distribuídos em outros países. Já tem título? Quintal da Banda.
Algum segredo?
Nem por isso. O Quintal da Banda tem para mim uma importância extraordinária. Muitos já esqueceram o que é um quintal, outros nunca tiveram, viveram sempre em prédios de 10 andares e sem elevador.
Terá alguma participação especial?
Terá a participação de Carmélia Jordana, uma artista franco-marroquina, que também faz cinema.
Terá quantas faixas musicais?
Serão dez músicas, com mensagens sobre Caxito, nosso Carnaval dos bairros e danças com o povo e o regresso aos primeiros 23 anos da vida do Bonga.
Onde faz as gravações?
Por favor, passar bem essa informação. Produzo, principalmente, em França, onde se encontra o meu agente, o editor dos meus discos, a mesma casa onde Cesária Évora gravava.
Trabalha com Betinho Feijó?
O Betinho Feijó, um dos maiores guitarristas africanos, é o chefe da minha orquestra. Quando se fala de um artista da sua dimensão, o prestígio, glamour e muito dinheiro, aparecem em primeiro lugar.
Qual é a situação do Bonga?
Tenho o suficiente para viver e acomodar os meus. Quando digo os meus, estou a falar dos filhos e netos. Mas não deixo de ajudar alguns contemporâneos necessitados.
Vive só da música?
Vivo só da música e isso é um grande exemplo que pretendo deixar para a nossa juventude. Sou dos poucos artistas africanos, profissionais de facto. Faço as minhas músicas com base nas composições que crio e tenho muitos trabalhos realizados, incluindo vídeo clips que, infelizmente, muitos em Angola não conhecem.
Juridicamente, como é que protege as suas obras?
Os meus discos estão inscritos na maior sociedade de autores e compositores do Mundo, em França. Cada música que passa em qualquer rádio na Europa, é descontado uma percentagem para mim. Com 400 músicas, isso dá-me um certo à vontade, ao ponto de parar de trabalhar por algum tempo, sem grandes exageros. Muitos cantores angolanos não sabem que isso existe.
Os franceses são os que, a nível da Europa, melhor defendem a obra artística. Quanto recebe por cada música que toca numa rádio?
Depende muito da obra. Por exemplo, há um indivíduo francês que, há tempos, cantou uma música do Bonga e vendeu 400 mil discos. Com uma música num disco que vendeu 400 mil cópias, é sempre um bom pacote.
Mais de 50 anos depois continua a ser procurado como antes?
Os meus serviços continuam muito procurados, o que me dá imenso prazer. Em 2020, perdemos 50 espectáculos, por causa da Covid-19. Apesar disso, a minha carreira vai bem e recomenda-se.
Quais são os espetáculos que mais lhe marcaram?
Vários, como aquele realizado no Olímpia de Paris, a grande catedral de França, em Roterdão, na Holanda, em Nova Iorque e em muitos outros lugares. Cantei na Rússia, China, Brasil e em vários outros países. Alguma vez foi solicitado a cantar sons de outros países? Sim, mas neguei. As outras línguas que falo dão-me essa possibilidade, mas sempre neguei. Tenho obrigações com Angola que não me permitem abraçar esse tipo de opções.
Dizem que o quimbundo que utiliza nas suas músicas é muito questionável?
O que me deixa perplexo nessas críticas é o facto de elas virem de indivíduos que não falam nenhuma língua nacional.
Escreve letras para outros artistas?
Fiz recentemente uma música para a Ary, mas também já fiz para Patrícia Faria, Pérola e outros que já não me vem à memória.
Recordista nos 200 e 400 metros estafetas
Como entra para o atletismo?
Comecei a praticar atletismo muito cedo, ainda adolescente. Aos 14 anos já participava em grandes corridas. No São Paulo dos pretos, próximo da igreja do São Paulo, havia um campo de futebol onde treinava uma equipa, cujo nome já não lembro que, posteriormente, passou a treinar outras modalidades, no campo do São Domingos, hoje igreja de Fátima.
E em Portugal?
Sai de Angola convidado pelo Sport Lisboa e Benfica, como semiprofissional.
Semiprofissional?
Sim, sai de Angola como semiprofissional. Para nós que vínhamos do ultramar, Angola, Moçambique e outros países africanos de língua portuguesa, o atletismo era uma modalidade semiamadora.
O profissionalismo era só para os brancos. Em Portugal havia naquele tempo outros atletas angolanos?
Éramos por aí uns 10. Tínhamos o Gingongo, Júlio Pereira, Júlio Fernandes, Rui Mingas, Tavares Alves, o primeiro angolano a ultrapassar a barreira dos dois metros de comprimento, nos anos 60. Naquela altura, enriquecemos o desporto em Portugal com as nossas marcas. Durante algum tempo fui o grande destaque da imprensa portuguesa. Era uma grande fanfarra.
Rui Mingas?
Sim, Rui Mingas esteve comigo em Portugal, mas de uma forma geral, todos os Mingas foram atletas do Club Atlético de Luanda, onde também estive. O Zé Mingas, era na altura o meu grande amigo, enquanto a Júlia foi basquetebolista. O André Mingas foi quem saiu de Angola para alertar-me que o meu nome constava de uma lista de angolanos procurados pela PIDE, acusados de terroristas.
Chegou a ser detido?
Nunca conseguiram apanhar-me. Sempre fui um grande “vijú”, dei umas “quicortas” nos madiés e bazei para a Holanda.
Quais são as suas principais marcas no atletismo em Angola e Portugal?
Fui recordista nos 200 e 400 metros estafetas. Bati vários recordes nessas especialidades em Angola e Portugal. Quando fui para Lisboa, já carregava comigo vários recordes nas costas. Em Portugal, foi só melhorar as performances.
Quem foi seu treinador Clube Atlético de Luanda?
Iniciei os meus treinos sob batuta de Demóstenes de Almeida Clinton, o paidos Clintons. Um grande homem, um pai e educador. Perguntou há pouco sobre as figuras de proa naquele tempo. Demóstenes de Almeida era uma delas. Foi um dos grandes nomes da altura. Um homem com bastante conhecimento e um temperamento invejável.
O reconhecimento de figuras mundiais
Will Smith afirmou recentemente que acordava com as suas músicas. Como é que se sentiu?
Lisonjeado, é claro.
Que vantagens é que isso lhe trouxe?
Olha, as vendas dispararam e mais do que isso, os meus discos Angola 72 e Angola 74, foram reeditados, em vinil.
Foi a primeira vez que foi referenciado por um actor com fama mundial?
Há outras grandes personagens mundiais que elogiaram o Bonga. Estou a falar de figuras como Ray Charles, Charles Aznavour, tocávamos juntos em Paris.
É muito apreciado no Brasil?
Tenho muitos amigos no Brasil, por quem nutro grande admiração. Normalmente, os angolanos cantam músicas brasileiras, mas no caso do Bonga, os brasileiros é que cantam a minha.
António Pimenta Jornalista
Discografia (Álbuns)
Angola 72 (1972, 1997)
Angola 74 (1974, 1997)
Raízes (1975)
Angola 76 (1976)
Racines (1978)
Kandandu (1980)
Kualuka Kuetu (1983)
Marika (1984)
Sentimento (1985)
Massemba (1987)
Reflexão (1988)
Malembe Malembe (1989)
Diaka (1990)
Jingonça (1991)
Pax Em Angola (1991)
Gerações (1992)
Mutamba (1993)
Tropicalíssimo (1993)
Traditional Angolan Music (1993)
Fogo na Kanjica (1994)
O Homem do Saco (1995)
Preto e Branco (1996)
Roça de Jindungo (1997)
Dendém de Açúcar (1998)
Falar de Assim (1999)
Semba N’Gola (2000)
Mulemba Xangola (2001)
Kaxexe (2004)
Maiorais (2006)
Bairro (2011)
Hora Kota (2011)
Recados de Fora (2016)
Compilação
Paz em Angola (1991)
Katendu (1993)
20 Sucessos de Ouro (1995)
O’Melhor De Bonga (2001)
Best Of Bonga (2009)
Live
Swinga Swinga (1996)
Bonga Live (2005)
Fonte : Jornal de Angola