Lúcia Ribeiro: A mulher que empossou o Presidente da República, Filipe Nyusi

Profª Doutora Lúcia Ribeiro é Presidente do Conselho Constitucional (CC), cargo que ocupa desde Agosto de 2019. Por imperativos legais, coube a ela a responsabilidade de empossar o Presidente da República, Filipe Nyusi, no dia 15 de Janeiro de 2020, para o seu segundo mandato, tornando-se assim, a primeira mulher no país com esse privilégio. Também investiu a nova Presidente da Assembleia da República, Esperança Bias, ao abrigo do disposto ao número 3, do artigo 190 da Constituição da República. Entrevista com a Profª Doutora Lúcia Ribeiro é a nossa proposta para a semana que inicia hoje. Boa leitura.

 

Zebra: Quem é Lúcia da Luz Ribeiro
Lúcia Ribeiro

Lúcia Ribeiro: Sou moçambicana, natural de Maputo, filha de Luís Pereira, enfermeiro, natural de Tete, e de Amélia Ribeiro, modista, natural de Maputo, porém, com a infância e juventude passadas na província de Manica, precisamente na cidade de Chimoio, para onde o meu pai foi transferido em serviço. Completei o Ensino Secundário na Escola Joaquim Mara, na cidade de Chimoio, e depois transferi-me para cidade de Maputo, onde fiz o curso de formação de professores de língua portuguesa, nos anos 1982-83, na Faculdade de Educação da UEM e, é por isso que pertenço a Geração 8 de Março. Depois do grau de licenciatura em Direito, pela Universidade Eduardo Mondlane (UEM), fiz Pós-Graduação em Assessoria Jurídica de Empresas na Universidade Politécnica de Madrid e conclui o Mestrado em Direito Empresarial pela mesma Universidade. Em 2019, Doutorei-me (PhD) em Direito pela Faculdade de Direito da UEM. Fui directora da Faculdade de Direito da UEM (2003-2004); Assessora Jurídica do Ministro das Obras Públicas e Habitação (1995 a 2003) e Presidente do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Advogados de Moçambique (2003). Sou mãe de três filhos e avó de três netos.

 

Zebra: Qual foi a sensação de investir um Presidente da República?
Lúcia Ribeiro empossando o Presidente Filipe Nyusi

Lúcia Ribeiro: De facto é um privilégio que a vida me deu, porque até aqui sou a única no país que tive essa possibilidade de empossar um Chefe do Estado. Creio que mesmo em África como no mundo, deve contar-se pelos dedos de uma só mão o número de mulheres que investiram um Chefe do Estado. Nesse aspecto, Moçambique está na vanguarda e é um marco nomear uma mulher que se sabe que vai conferir posse a um Chefe do Estado, sobretudo num país onde ainda domina o espírito machista, isto era impensável.

 

 

 

Zebra: Pode-se afirmar que o país está a registar avanços na área da emancipação da mulher?

Lúcia Ribeiro: Não restam dúvidas, estamos a registar grandes avanços graças ao esforço empreendido por várias organizações da sociedade, mas isso não quer dizer que o país tenha já atingido as metas. É verdade que a nível do continente africano temos um Parlamento com maior número de mulheres, um país com mais administradoras distritais, com mais PCA, mas a avaliação não pode se limitar por aí. Temos que ver as mulheres no seu dia-a-dia, lá nos bairros, nas zonas rurais e as mulheres no geral. Olhando para os índices de violência doméstica, para as desigualdades que ainda existem na educação, entre o número de rapazes e de raparigas, pode-se dizer que há avanços, mas ainda falta muito para se atingir o equilíbrio e é dever de toda a mulher dar a mão àquelas que ainda atravessam dificuldades, para que todas possam caminhar juntas e o país atingir o equilíbrio desejado.

 

“Faço parte de uma geração de lutas pela emancipação” 

Zebra: Sei que a Doutora Lúcia Ribeiro é defensora dos direitos da Mulher. Quando é que despertou essa consciência?

Lúcia Ribeiro: Olha, o senso de justiça esteve sempre em mim. Faço parte de uma geração de lutas pela emancipação da mulher e igualdade de oportunidades e, por essa via, sou membro de várias organizações sociais como a MULEIDE – Mulher, Lei e Desenvolvimento, a WILSA, um projecto de investigação a nível regional e a Associação Moçambicana das Mulheres de Carreira Jurídica, integrada na Federação Internacional das Mulheres Juristas.

 

Zebra: Terá vivido alguma experiência de injustiças?

Lúcia Ribeiro: A minha luta pela emancipação e direitos iguais entre homens e mulheres não signifique que tenha vivido na pele as injustiça. Eu seria injusta se dissesse que abracei estas causas por alguma injustiça que tenha sofrido. Até porque sou uma mulher privilegiada por ter pertencido a uma geração em que para se formar nada se pagava. Lembro-me que a única formação que paguei foi o mestrado que fiz na Universidade Politécnica de Madrid, Espanha, mas o resto foi graças ao Estado, incluindo o Doutoramento que fiz na Faculdade de Direito da UEM, na qualidade de docente.

 

Zebra: Mesmo no ambiente de trabalho?  

Lúcia Ribeiro: Muito pelo contrário assumi algumas posições por indicação de homens.

Fui a primeira mulher a dirigir a Faculdade de Direito, indicada por um reitor que foi o Professor Doutor Brazão Mazula; também fui indicada por um homem para assessora do Ministro das Obras Públicas e Habitação, por isso, afirmo categoricamente que nunca vivi a discriminação. Contudo, não ignoro que esse problema é uma realidade no país, daí o meu engajamento nesta luta para que mais mulheres possam ter acesso à educação e que possam gozar os direitos que lhes são conferidas pela Constituição. Por exemplo, como membro da MULEIDE participei na promoção de registo de casamentos e de nascimento de crianças, em diferentes bairros da cidade de Maputo.

 

Zebra: Continua integrada nessas associações?

Lúcia Ribeiro: Até hoje continuo integrada na Associação Moçambicana das Mulheres de Carreira Jurídica e, anualmente, antes da Covid-19, participava na reunião internacional das mulheres, que se realiza em Nova Iorque, nos Estados Unidos.

O meu envolvimento nestas actividades é para que, tanto a mulher, como a criança gozem dos seus direitos, e até para permitir a prevenção de situações tristes por que as mulheres ainda passam, sobretudo, quando perdem os seus maridos e são retiradas todos os bens. Penso que é dever de todas nós darmos a mão aquelas que ainda precisam, para que todas possamos atingir o equilibrio desejado.

 

Zebra: Sendo uma mulher com muitas ocupações, como consegue conciliar as actividades sociais e as profissionais?

Lúcia Ribeiro: Não tem sido fácil, mas procuro dar muito mais de mim para evitar erros, para que a sociedade não diga: o que se esperava? Quem disse para colocar uma mulher naquela posição?

 

Zebra: Quer dizer que a mulher deve redobrar esforços para lograr resultados desejados?

Lúcia Ribeiro: É que são as mulheres que levam as crianças ao médico, à escola, são elas que cuidam das questões domésticas, daí a necessidade de redobrarem esforços para conciliar todas estas tarefas, incluindo olhar para a família alargada. “Por exemplo, eu sou a mais velha de cinco irmãos e tenho a responsabilidade de zelar por eles. O problema de cada um deles afecta-me, mas também tenho tias e tios que também exigem a minha presença para uma e outra questão familiar, o que redobra a minha missão no seio da família. São estes e outros desafios que se colocam a todas mulheres, uma vez que a sociedade entende que são nossas obrigações.

 

“Actividade de juiz querer permanente investigação”

Zebra: Com todas essas obrigações ainda lhe sobra tempo para actividades académicas?
Lúcia Ribeiro empossando a Presidente da Assembleia da República

Lúcia Ribeiro: Sim, ainda encontro espaço para academia. É que a actividade de juiz requer uma permanente investigação, é como a do médico. Não se pode dizer que eu já estudei, já sei tudo, porque a gente nunca sabe, há sempre coisas novas por ver, para além de que as realidades e as dinâmicas sociais são diferentes. A própria legislação vai se alterando, daí que é necessário estudar e estudar sempre. Por isso, continuo a dar aulas, mas também esta é uma das actividades que a Constituição da República permite ao juiz, a par da investigação jurídica. Eu entendo que um bom juiz é uma pessoa que está sempre a investigar, daí a necessidade de estar sempre a estudar. Aliás, estou na docência desde 1982, ainda estudante da 9a classe, na Joaquim Mara.

 

Zebra: Cursar direito foi um sonho de infância?

Lúcia Ribeiro: Cursar Direito foi um desejo antigo, porque esteve sempre em mim o senso de Justiça.

 

Considero grande privilégio ter trabalhado com colegas como Rui Baltazar e Teodato Hunguana 

Zebra: Quando é que a Doutora Lúcia Ribeiro juntou-se à família CC?

Lúcia Ribeiro: Em Outubro de 2003 fui convidada para integrar o Conselho Constitucional que se ia constituir como tal, porque já estava instituído nos termos da Constituição da República de 1990. Na altura, cabia ao Tribunal Supremo o exercício das competências atribuídas ao CC. Faço parte da primeira composição do Conselho Constitucional, órgão que tomou posse no dia 03 de Novembro de 2003, constituído por Juízes Conselheiros Rui Baltazar, Teodato Hunguana, Orlando da Graça e eu própria. Dois dias após a nossa posse, optámos pelo quarto juiz, na circunstância João Nguenha, que tomou posse no dia sete de Novembro de 2003, completando-se assim a primeira composição de cinco juízes. Porque o órgão foi concebido para sete elementos, passados seis meses completou-se a sua composição com a entrada dos juízes conselheiros Lúcia Maximiano e Manuel Frank. Deixa-me explicar que fui incentivada a continuar os estudos pelo juiz conselheiro Rui Baltazar, logo após a constituição do CC. Considero-me, portanto, uma mulher muito privilegiada pelo facto de ter  trabalhado com colegas como Rui Baltazar e Teodato Hunguana, pessoas com uma longa estrada de pensamento.

 

Zebra: Arrancaram logo com instalações e funcionário, ou isso levou o seu tempo?

Lúcia Ribeiro: Iniciamos sem instalações, nem o quadro pessoal e recorremos às instalações da Faculdade de Direito da UEM. Foi ali onde começou o Conselho Constitucional, usávamos a sala de professores como plenária. Depois passamos a funcionar nas instalações do Centro de Conferências Joaquim Chissano, emprestadas pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros e saímos aquando da realização da Cimeira da União Africana. Na altura, o Presidente Joaquim Chissano arranjou-nos este edifício onde estamos hoje, que passou por uma reabilitação profunda.

 

Zebra: Pode revelar-nos o segredo para manter a boa disposição?

Lúcia Ribeiro: Para manter boa disposição, boa forma física e poder balancear as exigências profissionais e sociais, pratico ginástica e sou católica, a minha igreja é Santo António da Polana. Ainda arranjo espaço para participar do núcleo, na minha zona que reune às quartas-feiras.