O antigo estadista moçambicano, Joaquim Chissano, abriu-se a nós para contar parte da sua trajectória de vida. Mais do que uma entrevista, esta é uma conversa, profunda e sincera, sobre a vida de uma das figuras mais emblemáticas da história de Moçambique, cujo percurso se assemelha ao da nossa dinâmica criativa moderna e contemporânea. Afinal, ele não só testemunhou como foi protagonista dos principais eventos que nortearam ao hastear da bandeira moçambicana enquanto estado-nação e ajudou a cimentar as várias etapas do seu desenvolvimento. Com o Presidente Chissano falamos sobre a vida e obras, tendo como ponto de partida a sua infância, nos carreiros de Malehice, em Gaza, a vinda a Maputo, o seu percurso estudantil, onde destaca-se o facto de ter sido o primeiro estudante negro do Liceu Salazar, (hoje Escola Secundária Josina Machel), a ida à Portugal para formação e depois a fuga para Tanzânia onde foi juntar-se aos Homens que lá estavam para, juntos, formarem a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). A consciência nacionalista, a gesta libertária e a sua grande epopeia que vai da Luta de Libertação Nacional e culmina com a Independência do povo e da terra, cujo marco foi 25 de Junho de 1975, naquela noite de chuva simbolizada pela troca de bandeiras mais que, para os moçambicanos, significava principalmente o hastear de sonhos e da esperança, da liberdade, da paz e do progresso. Embora considerado génio por muitos, Joaquim Chissano prefere contornar esse epíteto, continuando a manter o seu pendor de figura humilde e calmo, ponderado e sincero nas decisões que toma. Eis alguns dos excertos desta Grande Entrevista concedida por esta personalidade ímpar que liderou pessoas e processos, e ao longo de 18 anos manteve-se à frente dos destinos de Moçambique. Mas antes, este diplomata de gema fora Primeiro-Ministro dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, no Governo de Transição, Doutor Honoris Causa por várias instituições académicas e responsável pela criação do Instituto Superior de Relações Internacional (ISRI) – que hoje leva o seu nome (Universidade Joaquim Chissano) – cuja natureza foi inspirada no modelo cubano, bem como primeiro antigo estadista a receber o Prémio Mo Ibrahimo de Boa Governação em África, no fim do seu mandato governamental. Hoje continua a ser enviado especial das Nações Unidas e da União Africana em missões de paz, promovendo a reconciliação e a concórdia entre os Homens. Enfim, caro leitor, arrancamos com esta entrevista que marca o ponto de partida para tantas outras que esperamos passar nesta plataforma digital. Boa leitura.
Zebra – Muitos consideram o Presidente Joaquim Chissano um homem calmo. Acredita nos signos? Nesse caso Balança, que é o Signo Astrológico do Presidente Chissano.
Presidente Joaquim Chissano – Não tenho que acreditar ou não, pois, sinceramente, não sei o que isso realmente significa. Acredito, no entanto, que todo o universo é unido e deve, certamente, haver uma interacção entre tudo o que o compõe, incluindo os fenómenos que nele aparecem. Sabemos que a terra gira em volta de uma estrela que é o sol, mas há muitas outras estrelas e outros astros que também giram. Esses movimentos todos podem ter relação com a vida na terra, que inclui o espaço marinho e suas profundezas.
Zebra – Será a tal estranha relação de conexão entre o cosmos e o ser humano?
Presidente Joaquim Chissano – Pode ser. Por exemplo, temos pessoas que nascem em determinados lugares onde deve ter havido uma interacção de todo o cosmos, de todas as estrelas com os seus satélites e os seus planetas, de todas as coisas que existem. Não sei se o horóscopo vibra ou se realmente tem alguma objectividade ou conectividade, mas existe em mim a sensação de que deve haver alguma relação entre tudo isso.
Zebra – São as tais manifestações, ou melhor, sinais que, diz-se, estão também presentes no nosso corpo?
Presidente Joaquim Chissano – É isso. Aliás, ouvi dizer que o cérebro humano está feito da mesma maneira que o cosmos, com um centro que representaria o sol. Diz-se que isso pode determinar a necessidade que as pessoas têm de acompanhar o sol ao levantar-se, bem como ao deitar-se, bem como o próprio movimento da terra, pois o que gira é a terra e não o sol. Ouvi muita coisa sobre o cérebro humano que pode ter essa relação. Ouvi também que da palma da mão e da planta do pé há pontos que estão relacionados com todo o nosso corpo, e mesmo acontece também na orelha…
Zebra – Portanto, a explicação do Presidente Joaquim Chissano responde à primeira pergunta que é… (Risos)
Presidente Chissano – …A resposta para a sua pergunta é: Eu não sei. Mas em geral na nossa família somos pessoas calmas e sociais. Quando passei a conviver com muita gente, sobretudo durante a Luta de Libertação de Moçambique, várias vezes, o Presidente Samora Machel incumbia-me o papel de ir comunicar algum assunto aos camaradas ou a suas famílias quando houvesse situações de tragédia, sobretudo quando ele sabia que não haveria de se conter. Na minha família, também quando há situações de desgraça eu sou o último a chorar, muitas vezes sem ninguém me ver, porque naquele momento vejo-me com a obrigação de amparar a todos.
Zebra – O que levou os seus pais a mandarem-no viver com a sua avó, ainda em tenra idade?
Presidente Joaquim Chissano – Nasci numa época em que quando as mães desmamassem os seus filhos entregavam-nos, durante algum tempo, aos cuidados dos avôs. E o meu caso não foi excepção. Até aos cinco anos estava em Maputo e aos seis a minha avó pensou que já tinha idade para começar a estudar e matriculou-me numa escola missionária (a Sant’Ana da Munhuana). Mas, nesse mesmo ano, o meu pai deixou de trabalhar na minha terra natal, Malehice, em Gaza, e passou para a cidade de Xai-Xai. Foi quando mandou que fosse viver com ele. E uma vez lá, fui matriculado numa outra escola missionária. Nessa altura, o meu pai tinha requerido o estatuto de assimilado precisamente para poder matricular os seus filhos nas escolas oficiais, onde o ensino era mais elevado e mais célere do que nas escolas missionárias. Não que se ensinava muito mal, mas o aluno levava mais tempo para concluir a 4ª Classe. Quer dizer, nas escolas missionárias, o aluno permanecia seis anos para concluir a 4ª Classe no lugar de quatro anos numa escola oficial, onde passei a estudar. Portanto, não saí de Malehice para Xai-Xai, mas sim de Maputo para lá.
Zebra – A trajectória da sua infância deve o ter impedido de pastar gado como era rotina de todas as crianças naquela altura.
Presidente Joaquim Chissano – Nem por isso. Quando atingi a idade certa para a pastagem fi-lo, porque em todas as férias escolares, incluindo da Páscoa e do Natal, era quase obrigatório passar em Malehice, empenhado em tudo o que se faz no campo, incluindo a pastagem de gado, que não era muito. Tínhamos também algumas ovelhas, patos, coelhos e galinhas que precisavam de cuidados e, diga-se de passagem, lá no Xai-Xai não vivi só com o meu pai, porque quando eu estava ainda nas classes iniciais, ele foi trabalhar num outro lugar, deixando-me com um encarregado de educação que era camponês, carpinteiro e tinha gado, e eu participava em todas essas actividades.
Zebra – O Presidente Chissano foi o primeiro negro a estudar no Liceu Salazar, actual Escola Secundária Josina Machel. Isso não o assustou?

Presidente Joaquim Chissano – Como eu havia tido uma boa preparação do meu professor da 4ª Classe, que era um português, mas muito boa pessoa e muito amigo dos meus pais não tive muitos problemas, para além de que já tinha convivido com a família e amigos desse meu professor. Também vinha de uma escola oficial onde a maioria era branca. Então, quando cheguei ao Liceu Salazar não senti um grande choque.
No entanto, só o facto de alguns estranharem a presença de um negro era, para mim, constrangedor, algo que tive de superar. Também quando somos crianças esses assuntos pouco nos interessam, embora tenha vivido alguns episódios não muito bons, sobretudo no meu relacionamento com a comunidade escolar, durante os dois primeiros anos, antes de começarem a entrar outros negros. E mesmo depois da entrada desses outros meninos negros não mudou muita coisa porque o nosso relacionamento era esporádico, uma vez que estávamos em secções diferentes. Agora é verdade que vivi e sofri vários episódios de racismo.
“Não sou tão inteligente, preciso de trabalhar muito para
produzir algo que mereça aprovação”
Zebra – Veio a Maputo ainda pequeno para viver com a sua avó e voltou mais tarde para estudar no Liceu Salazar. Em que bairro residiu?
Presidente Joaquim Chissano – Vivi em dois lugares, primeiro na zona da Avenida de Angola e depois no bairro da Mafalala, para além de outros lugares onde ia viver com familiares, embora fosse por pouco tempo. No entanto, de forma fixa, vivi no bairro de Mafalala, próximo à residência do Presidente Samora Machel. Na altura não nos conhecíamos, mas depois de algum tempo passei a vê-lo passar na zona, mas nunca cheguei a imaginar que fosse meu vizinho.
Zebra – Fez parte do Núcleo de Estudantes Secundários de Moçambique (NESAM). Quem foram os mentores deste grupo e até que ponto foi importante para a afirmação da juventude moçambicana naquela altura?
Presidente Joaquim Chissano – O núcleo foi uma inspiração do Presidente Eduardo Mondlane, a partir de uma conversa que teve com um grupo de jovens que, se calhar foi o primeiro verdadeiro núcleo a existir, que se chamava grupo juvenil. Este pertencia ao Centro Associativo dos Meninos da Colónia de Moçambique, fundado em 1949, com o objectivo de promover o jovem estudante negro. Refiro-me aos estudantes secundários, porque não havia universidade e, para isso, era necessário que houvesse união entre eles para os estudos. O Presidente Mondlane tinha uma visão mais profunda porque havia vivido na África do Sul, e certamente já tinha noção da importância e interesse de um estudante numa instituição de ensino. Também ele havia sido vítima de racismo e chegou a ser expulso de lá. Então, o Presidente sugeriu a esse grupo que se organizasse melhor e, assim, foi criado o Núcleo de Estudantes Secundários de Moçambique.
Zebra – Quando é que o nacionalismo desperta em si e como se dá o seu interesse pela política?
Presidente Joaquim Chissano – Não existe data ou ano exacto para isso nem motivo. É algo que se construiu com o tempo, pelo menos é assim como eu vejo, porque não foi daquelas situações de levar uma bofetada e correr para se vingar. É difícil também definir a data do início da minha actividade política. A questão é: será que iniciei quando era criança e estudava numa escola de brancos e com poucos negros? Será que foi quando o meu pai teve que se tornar assimilado para poder matricular os filhos na escola oficial? Será quando eu gritava vivas a Portugal e vivas a Salazar? Não sei. Por isso, a minha resposta é que isso faz parte de um processo que foi se construindo em mim. Mas também pergunto se será que tive interesse pela política ou comecei a fazer uma luta de libertação, ou uma luta de emancipação pessoal ou do grupo?
Zebra – Como conseguiu matricular-se numa universidade em Portugal. Ganhou uma bolsa de estudos ou foi por influência do seu pai?
Presidente Joaquim Chissano – O meu pai queria uma educação mais completa possível para os seus filhos e eu havia me dado muito bem no ensino secundário. Inicialmente até havíamos de nos contentar com o 5º ano do Liceu, que hoje corresponde à 9ª Classe em termos de número de anos. E, naquela época, quem tinha esse nível estava no topo, porque já podia matricular-se numa escola para ser administrador de distrito ou governador, que eram autoridades muito altas. E essa escola estava em Portugal. E quando terminei o 5º ano de Liceu já havia sido feita uma proposta ao meu pai para que eu fosse trabalhar como chefe do posto e, se calhar, algum dia tornar-me-ia administrador ou mesmo podia ir a Lisboa tirar o curso técnico de administração.
Zebra – Isso simbolizava alguma abertura e relaxamento por parte do regime colonial português? Chegou a aceitar essas propostas?
Presidente Joaquim Chissano – Não, não era abertura. O facto é que haviam brancos interessados em puxar alguns negros para uma completa assimilação, mas não porque estavam dispostos a ver esse mesmo negro com graus superiores de formação. E nessa altura eu já era suficientemente adulto para fazer escolhas, por isso optei por terminar o nível mais alto, que era o 7º ano do Liceu, aquilo que se chamava curso complementar e que só frequentava quem quisesse ir à universidade. Eu queria ter esse nível, pois sabia que com ele podia ter caminho para progredir na vida. Só que terminado o 7º ano senti que podia continuar com os estudos. É assim que vou dar à Portugal.
Zebra – Recebeu algum incentivo por parte dos seus familiares?
Presidente Joaquim Chissano – Sim, de toda a família. Por exemplo, encorajado pelos meus pais, decidi continuar a estudar em Portugal. E fiz exames de admissão sem recurso a nenhum favor, daí que, para isso, tive que trabalhar arduamente, pois não sou tão inteligente como as pessoas imaginam.
Zebra – Todos nós pensamos que o Senhor Presidente é uma pessoa inteligente e profundamente lúcida. Ou seja, essa é a imagem que carrega (Risos)…
Presidente Joaquim Chissano – Sou daquelas pessoas que trabalha muito para fazer alguma coisa que mereça aprovação. Por isso, para alcançar esse objectivo “batalhei” muito durante os meus estudos, onde tive muitas quedas, vários momentos altos e baixos, mas com muita persistência consegui matricular-me numa universidade em Lisboa…
Zebra – Uma tarefa árdua…
Presidente Joaquim Chissano – Não foi fácil, porque nunca fui um aluno brilhante, daqueles que dispensa nos exames ou tira notas que permitissem uma bolsa de estudo. Mas, batalhei e tive promessas de bolsa de estudo de que nunca desfrutei (Risos). Creio que se não tivesse interrompido precocemente os estudos a bolsa teria saído.
Os Professores do Presidente
Zebra – Nesse percurso estudantil, houve algum professor que o marcou de forma particular?
Presidente Joaquim Chissano – Houve vários, a partir da escola primária, como foi o caso do professor Januário Montes, meu professor na 4ª Classe que ajudou-me na preparação para exames de admissão ao liceu. Alguns alunos tinham que fazer um ano extra de preparação após a 4ª Classe, mas, graças à preparação que recebi desse professor, não passei por isso. Tive outros professores que me marcaram como os da 1ª Classe que, por sinal, foram três: o próprio director da Escola, o professor Bartolomeu Abreu; e a dona Aida, não me lembro dos nomes dos outros. Na Escola Secundária tive vários professores que merecem destaque por terem-me ajudado a superar certas dificuldades, uma das quais foi a professora Irene Vaz, que dava a disciplina de Ciências. Esta foi minha professora no 1º ano do Liceu e veio a sê-la novamente no 6º e 7º anos. Outro professor que merece destaque foi o de desenho, de nome Gonçalves, que, apesar de ter sido só por um ano, marcou-me pela forma como transmitia os seus conhecimentos. Mais tarde saí do Liceu para um colégio onde encontrei um casal de professores cujos nomes me fogem, mas o marido era engenheiro. Ele dava desenho e ensinava-nos como projectar peças, sobretudo na disciplina de Projecção. O professor de português, Adalberto de Azevedo, também marcou-me porque, apesar das dificuldades que tinha nesta disciplina, consegui ser o segundo melhor classificado, num ano em que estava a repetir o exame de secção de letras. Este professor de português, no Colégio Pedro Nunes, era muito famoso e, por sinal, foi também professor do Presidente Samora Machel, nos anos 1950.
Zebra – O que é, para si, ser um bom professor?
Presidente Joaquim Chissano – Bom professor é o que se interessa em acompanhar o estudante e o ajuda a compreender as matérias dadas, preocupando-se em perceber as dificuldades que os seus estudantes têm para apoiá-los a superá-las. Compreendo que, para o professor de hoje, é difícil dar este acompanhamento, pois trabalha com turmas enormes, contrariamente àquela altura em que uma turma tinha no máximo trinta estudantes.
Zebra – Fala por experiência…isso é muito bom (Risos)
Presidente Joaquim Chissano – É. A minha própria experiência é prova disso, porque foi graças à atenção de alguns professores que ultrapassei as dificuldades que tinha, uma vez que eles não se interessavam apenas com estudantes brilhantes como fazem muitos hoje. Naquela altura, tínhamos antecedentes diferentes de educação, uns vinham do campo, outros da cidade, como era o caso dos meninos portugueses que já viviam num determinado ambiente que propiciasse a fácil apropriação do conhecimento, pois os pais e avós tinham uma educação que os nossos não tiveram. Não é fácil para um professor explicar matérias nesses contextos, mas havia aqueles que se apercebiam disso e puxavam por aqueles que precisavam de apoio adicional. Às vezes era uma questão de explicar duas ou três vezes a mesma matéria. Por exemplo, eu via pessoas com gravatas, mas não tinha curiosidade de olhar para uma gravata; via pessoas com capulanas, mas não tinha curiosidade de relacionar isso com desenho. Foi necessário que o professor me dissesse para olhar para as gravatas de modo a perceber o que é desenho decorativo e como, com imaginação, vão ser colocados os motivos nesse desenho. O professor explicava o que é um motivo e o que é um jogo de cores. Depois da aula, quando andasse na rua já olhava para as pessoas com mais atenção, passei a gostar da disciplina e já conseguia tirar 20 valores, quando com outro professor nem sete valores conseguia. Então, para mim, o bom professor é o que é capaz de preparar os alunos para irem ao exame de admissão sem medo, porque sabe transmitir o seu pensamento e conhecimentos, sabe medir a compreensão que o aluno tem e sabe ver se ele compreendeu ou não a matéria.
Portugal, França e Tanzânia: viagem para a luta em busca da independência
Zebra – Pode falar-nos sobre o processo de interrupção dos seus estudos, a saída de Portugal para França e depois o rumo para Tanzânia ?
Presidente Joaquim Chissano – Tivemos que sair de Portugal para França por causa da tensão que se vivia naquele país, caracterizada pelo início da perseguição aos estudantes que mostrassem alguma paixão pelas independências ou pelas lutas de libertação nas colónias africanas. E sentimos que estávamos entre esses estudantes vigiados, embora não tivéssemos nos manifestado ainda. Sabíamos também que não havíamos de resistir por muito tempo. Por isso, quando chegou a vez, fomos um grupo grande que partir para França.
Zebra – Porquê França, que interesse tinham?
Presidente Joaquim Chissano – A ideia era, a partir da França, sabermos melhor o que se passava nos nossos países. Também queríamos estudar num ambiente de maior tranquilidade, sem perseguições. Embora não conhecêssemos bem a França, sabíamos que lá havia mais liberdade, para além de que o próprio país já dava independência às suas colónias.
Zebra – Quem foi o mentor dessa “fuga”?
Presidente Joaquim Chissano – Houve uma organização dos estudantes que tratou disso. Mas, em parte, contamos com a participação do Presidente Eduardo Mondlane. Chegados lá, organizamo-nos em grupos de proveniência e aí percebemos que nós, moçambicanos, éramos poucos. E, mesmo assim, criamos a União Nacional dos Estudantes Moçambicanos, o que quer dizer que já não era o Núcleo dos Estudantes Secundários Africanos de Moçambique. Tínhamos consciência que não havia muitos estudantes no ensino superior, por isso alargamos a noção do núcleo para englobar estudantes secundários e do ensino superior. Assim, o núcleo mudou o nível das suas actividades, uma vez que passamos a ganhar interesse com as questões da luta pela independência, embora já tivéssemos a ideia de que a independência era o nosso objectivo principal…
Zebra – Com esta explanação é possível compreender que aqui não se trata de ir juntar-se, mas sim foi participar na criação, a partir da base…
Presidente Joaquim Chissano – Eu não fui juntar-me aos camaradas. Nós criamos este movimento do nosso lado, enquanto os outros irmãos criavam outros alicerces, porque na altura não utilizávamos a palavra camarada, éramos irmãos. O que fizemos foi uma luta para que esses movimentos de libertação tivessem força e sabíamos que ela (a força) estava na unidade, daí que, em contacto com outros nacionalistas, primeiro com Marcelino dos Santos e depois o Presidente Eduardo Mondlane, chegamos à conclusão que devíamos ser unidos. E quando, pela primeira vez, vou à Dar-Es-Salaam, na Tanzânia, vou como um dos construtores desta unidade que o Presidente Mondlane e outros já faziam e, assim, lá criamos a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Então, não posso dizer que fui juntar-me à FRELIMO, eu fiz parte da criação da “Frente”.
De Bagamoyo a Nachingweia: combater, produzir e educar
Zebra – Qual foi o papel do Centro de Bagamoyo na Luta de Libertação Nacional?
Presidente Joaquim Chissano – Bagamoyo começou por ser um centro de recepção de guerrilheiros da Frente de Libertação de Moçambique, que haviam ido receber treinos político-militares na Argélia. O primeiro grupo a regressar foi recebido lá, e talvez Bagamoyo foi o primeiro Centro de Formação Militar na Tanzânia. Mais tarde, Bagamoyo passou a ser, primeiro, um Centro de Alfabetização e, depois, Centro de Trânsito de novas pessoas que chegavam para juntar-se à Luta de Libertação de Moçambique ou iam à busca de uma bolsa de estudos através da “Frente”. Então, Bagamoyo era centro de trânsito.
Zebra – Em algum momento chegou a assumir estatuto de escola?
Presidente Joaquim Chissano – Foi por um curto espaço de tempo que chegou a ser transformado numa escola política, onde ensinava o que é a FRELIMO, os seus objectivos, políticas e filosofias que orientavam a sua missão, mas também falava-se sobre as lutas pelas independências que eram desencadeadas um pouco por todo o mundo. Mais tarde transformou-se numa escola primária, mas também por pouco tempo, pois mudamo-nos para o Sul da Tanzânia, onde havia o Centro de Preparação Político-Militar, criado em 1964, quando o grosso dos guerrilheiros regressou da Argélia. Depois criamos o Centro de Nachingweia, em 1965, quando se concluiu que o de Kongwe não contribuía tanto para as actividades da Luta de libertação de Moçambique que se desencadeou em 1964, uma vez que estava longe da fronteira.
Zebra – Com a criação do Centro de Nachingweia o de Bagamoyo terá perdido a sua relevância?
Presidente Joaquim Chissano – Bagamoyo continuou, por algum tempo, como uma escola primária. Nesse movimento, a escola do Bagamoyo passou a não ter matéria porque muitas actividades passaram para o sul e transformou-se numa Escola Secundária, sobretudo, porque tivemos problema no espaço onde a escola havia sido criado o chamado Instituto Moçambicano, que era uma Escola Secundária da Frelimo. Houve distúrbios e não teríamos muitos estudantes, por isso mudamos para um lugar distante, onde haveria tranquilidade que foi Bagamoyo. E a escola primária passou para Tunduro, onde havia mais crianças que eram tiradas dos campos de refugiados e outras vinham com os pais, a partir do interior de Moçambique. Este foi também um centro de produção para alimentar essas mesmas crianças.
Zebra – A ideia era combater, produzir e educar as crianças…o povo?
Presidente Joaquim Chissano – Sim. Procurávamos aliar a educação académica e a produção. E no nosso emblema tem arma, enxada e livro. São três palavras de ordem: uma dirigida aos guerrilheiros e combatentes da luta armada, cuja primeira tarefa é de combater, a segunda é produzir e a terceira actividade era estudar. Para os jovens e crianças a palavra de ordem era quase no sentido inverso, estudar, produzir e combater porque era preciso que as crianças, pelo menos aquelas que tivessem idade de poder se defender, conseguissem fazer isso, porque as escolas eram alvos de ataque do inimigo, mas esta não era a tarefa prioritária. E os adultos que não fossem combatentes, a sua primeira tarefa era produzir para alimentar as criança, os jovens e os combatentes, mas também alimentar-se a si próprios. A sua segunda tarefa era estudar e, por fim, combater. Essa é a palavra de ordem que está na bandeira, mas as pessoas que não compreendem dizem que é nostalgia militarista, mas não é isso.
Criação do ISRI tem inspiração cubana
Zebra – Diz-se ter sido mentor da criação do Instituto Superior de Relações Internacionais e Diplomacia (ISRI), hoje Universidade Joaquim Chissano. Porque pensar numa instituição que ensina diplomacia?

Presidente Joaquim Chissano – Foi resultado de uma necessidade que o país tinha. Quando fui nomeado Ministro dos Negócios Estrangeiros a instituição tinha apenas seis pessoas para me ajudarem a realizar os trabalhos, e nenhum delas tinha experiência de relações internacionais.
Alguns de nós tínhamos passado pelas mesmas vias, por exemplo o Alberto Sithole tinha sido representante da FRELIMO em Lusaka, na Zâmbia, eu tinha sido negociador de várias coisas com o Governo da Tanzânia e representava a FRELIMO em todas as embaixadas que estavam na Tanzânia e coordenava outras missões da “Frente”. Depois estava o Armando Panguene, que veio ao Ministério mais tarde. Vieram ainda Luís Bernardo Honwana, José Chicuara Massinga, que tinha estudado nos Estado Unidos, mas ele também não tinha experiência nenhuma em diplomacia. Então, era preciso formar quadros. Naquela altura era difícil encontrar alguém com 9ª Classe que não tivesse outras ocupações no Estado para estar nos “Negócios Estrangeiros, para além de que no país nunca tinha havido um ministério semelhante a esse.
Zebra – Até ponto o Movimento 8 de Março foi importante para ajudar a suprir o défice do pessoal no Ministerio dos Negócios Estrangeiros?
Presidente Joaquim Chissano – Lembro-me que alguns alunos tiveram que interromper os seus estudos, em anos sucessivos, para serem distribuídos pelas instituições do Estado, e muitos vieram assegurar o funcionamento do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Lembro que houve um jovem que só tinha 17 anos, que foi necessário ele passar por várias capacitações até completar 18 anos de idade.
Zebra – Que missões específicas eram atribuídas a eles?
Presidente Joaquim Chissano – Esses jovens tinham que beber os ideais da nação, saber o que deviam transmitir sobre Moçambique aos outros países, o que, como país, queremos na cooperação com outros países. Fomos também aprendendo com outras organizações como a Organização da Unidade Africana (hoje União Africana-UA) e com os outros movimentos que ainda estavam a lutar pela libertação dos seus e outros países. Paralelamente, criamos um curso progressivo de Relações Internacionais e Diplomacia, e também mandávamos os nossos jovens quadros para algumas embaixadas fora do país, principalmente para as Nações Unidas, onde ficavam dois anos e regressavam com alguma experiência de trabalho. Nesse esforço, lembro que pedi a um professor de uma escola de relações internacionais da ex-República Democrática da Alemanha (RDA) para que ministrasse algumas aulas. Embora o centro deles fosse diferente, porque formava indivíduos com o nível superior, eu mesmo orientava a esse professor sobre o que queríamos que os nossos jovens aprendessem.
Zebra – Sabemos que, nesse quadro, visita Cuba. E é lá que acendeu a lâmpada mágica para a criação de uma instituição moçambicana que lidasse com essas matérias… (Risos)
Presidente Joaquim Chissano – É verdade. Mais tarde viajei para Cuba onde visitei o Instituto Raul Roa, que foi o primeiro Ministro dos Negócios Estrangeiros de Cuba, depois da Revolução. Raul Roa havia criado este instituto para suprir a falta do pessoal. A instituição formava os seus diplomatas de raiz. Admitia estudantes que tivessem terminado o nível médio e formava-os durante quatro anos, enquanto nos outros países, como Alemanha, o estudante em diplomacia tinham que ter terminado um curso superior. Eu, na qualidade de Ministro, compreendi que as relações internacionais são multi-sectoriais, onde existe economia, política, protocolo de estado, defesa e outros, embora muitos só vêm as relações internacionais do ponto de vista de direito internacional. Então decidi seguir o exemplo de Cuba, primeiro criando um curso. E a escola funcionava em Dar-Es-Salaam, utilizando as instalações do Instituto Moçambicano, numa parceria com o Governo da Tanzânia, que fez questão em não receber aquele edifício quando regressamos a Moçambique, porque queria continuar a trabalhar connosco.
Zebra – Até que ponto isso era prático, tendo em conta a diferença que existia nos modelos de formação?
Presidente Joaquim Chissano – A princípio nós enviávamos os nossos quadros para os primeiros cursos, mas depois vimos que ia levar muito tempo porque não tinham o nível de formação que os tanzanianos possuíam, muito menos experiência profissional. Os nossos estudantes só tinam 9ª ou 11ª Classe e eram misturados numa turma com indivíduos que saiam de universidades ou que já tinham experiência em diplomacia.
Nesse contexto, decidimos criar o nosso instituto cá em Moçambique, em colaboração com o Instituto Alemão, mas também com o apoio dos cubanos que vinham por pouco tempo, fazendo rotatividade entre eles. É assim que começamos com o ISRI, numa residência na Avenida Julius Nyerere. Hoje, temos um campus muito grande, mas foi assim que tudo começou.
Zebra – Portanto, é lícito dizer que as necessidades nacionais determinaram a criação do ISRI?
Presidente Joaquim Chissano – Sim. Primeiro pela necessidade e, segundo, pela inspiração de Cuba com o apoio da Alemanha. Mas, depois tivemos a colaboração da Suécia no contexto da cooperação. É interessante que os suecos quiseram-nos impor as sua forma de organização quando nós já tínhamos tido outras formas. E, quase nos convenceram a tomarmos o modelo deles, só que depois de algumas visitas ao nosso país, a delegação sueca partiu de volta e foi lá adoptar o nosso sistema. (Risos). É que eu havia tirado muitos modelos e conversado com muitos diplomatas para poder planificar o desenvolvimento dos Negócios Estrangeiros em Moçambique.
Zebra – Como Ministro dos Negócios Estrangeiros na altura, teve influência preponderante no regresso massivo de moçambicanos que viviam fora do país?
Presidente Joaquim Chissano – O que sei é que quando me preocupava com a questão da paz em Moçambique, olhei também para a questão da harmonia dos moçambicanos fora do país. Então, comecei a mandar mensagens convidando os moçambicanos para regressarem ao país, nem que fosse para visitar. Lembro-me que tive encontros com muitos moçambicanos, independentemente das suas filiações políticas. Alguns até tinham medo, sobretudo porque o país estava em guerra. Foi assim que regressaram cidadãos como Domingos Arouca, Máximo Dias, Vilanculos, Chicuara Massinga e outros que estavam radicados no Quénia, Portugal, Alemanha e em outros países.
Continuo a estudar
Zebra – Não terminou os estudos como disse ao longo desta entrevista, depois de terminar a missão de Presidente da República, não colocou a hipótese de voltar à faculdade?
Presidente Joaquim Chissano – Quando terminei a missão de Chefe do Estado recebi muitas tarefas. Caso contrário, acredito que poderia ter feito issso, tal como fizeram alguns ex-estadistas que não tiveram a quantidade de missões que eu recebi. Teria voltado à escola talvez não diria continuar a fazer Medicina porque leva muito tempo, quase sete anos, e depois há aulas práticas sobre seres humanos (Risos).
Zebra – Mesmo assim, continuou a estudar, sobretudo a ler muito?
Presidente Joaquim Chissano – Sim. Já fiz algumas coisas, convidando professores da universidade para me darem palestras, não para ter diploma, mas para me ajudarem a desempenhar as minhas tarefas, sobretudo no domínio internacional. Já pensei em matricular-me numa universidade quando era Chefe do Estado, mas a carga de tarefas não permitiu, nem para fazer os cursos à distância. Neste momento faço estudos de forma ad-hoc, ou seja estudos por assuntos ou por tarefas que tiver por realizar.
Zebra – Ainda continua a receber muitas missões?
Presidente Joaquim Chissano – Continuo. Como fui Chefe do Estado pensam que tenho muitos conhecimentos. (Risos) Mas em muitas reuniões em que participo consigo dar rumo ou encontrar a solução que se procura, graças aos conhecimentos que fui acumulando nesta grande universidade da vida.
Joana Macie